terça-feira, 31 de março de 2015

A culpa não é só dos outros

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Já faz quase um ano que um clima de ressentimento se instaurou no Brasil. A campanha eleitoral acirrou os ânimos e criou um clima de “nós contra eles”. Ainda não havíamos processado adequadamente nossas divergências quando as manifestações de março fizeram o clima de divisão e ressentimento voltar fortalecido.
Após as eleições, os eleitores de Aécio culpavam os que votaram em Dilma por lançaram o Brasil em mais 4 anos de desgoverno político e econômico. Acusavam os “dilmistas” de falta de consciência política, de se deixarem enganar por políticas assistencialistas, sem ver as inevitáveis consequências de uma crise econômica, que se abateria inclusive sobre os programas sociais.
Agora, os defensores de Dilma atacam os manifestantes contrários a ela. Eles são culpados por uma eventual desestabilização do governo, por defenderem “o golpe” do impeachment e por quererem a volta da ditadura militar. São acusados de serem de classe média e não estarem atentos às dificuldades das classes populares e dos mais pobres, de não quererem ver o quanto as políticas sociais amparadas por governos petistas fizerem bem aos mais pobres.
Um observador externo, alheio ás polarizações, verá facilmente que existe uma boa dose de verdade e um tanto de exagero nas duas posições. Em ambos os casos encontramos a mesma dificuldade de sair de nosso lugar social e ideológico para procurar entender as razões do outro. Mas o diálogo e as alternativas consensuais dependem justamente desta capacidade de olhar o mundo procurando entender a ótica do outro – mesmo que nunca possamos estar exatamente no lugar em que ele está.
Por que isto é tão difícil, num momento em que a sociedade precisa tanto de alternativas e unidade na luta pela superação dos problemas? Um teórico liberal dirá que nossa tendência é sempre a de buscar atender a nossos interesses privados e a convivência social se faz justamente a partir de um contrato que acomode todos os interesses, inclusive os conflitantes. Um marxista dirá que o problema é o lugar social que cada um ocupa, que faz com que olhemos o mundo a partir de nossos interesses de classe.
Novamente teremos que reconhecer que existe boa dose de verdade nas duas posições. Mas liberais e marxistas têm de reconhecer que alguns são capazes de superar seus interesses particulares e sua posição social, criando um real encontro entre diferentes, uma nova posição na sociedade.
O cristianismo chama “conversão” a esta mudança de posição, a este dedicar-se a um outro de uma forma que supera interesses particulares e posições de classe. Nunca é completa e perfeita, porque não somos completos e perfeitos, mas pode ser real e incidente. Para que um líder possa subir num carro de som e direcionar milhares para uma busca real ao bem comum, para uma luta que supere os particularismos, é necessário que milhões tenham vivido e educado seus filhos segundo esta lógica.
Os cristãos não detêm o privilégio desta conversão. Outros podem chegar a ela por outros caminhos. Mas a adesão a Cristo será falha se não tiver esta capacidade de abertura ao outro e de percepção da própria responsabilidade social.
Num contexto como o atual, a culpa não é só dos outros. Nós também temos uma parcela dela. Talvez muito pequena, quase ínfima, talvez muito grande. O ressentimento e a justificação das próprias posições não mostrarão caminhos. Estes são tempos de descobrir as razões do outro, não de absolutizar as nossas.
Jornal “O São Paulo”, edição 3044, de 25 a 31 de março de 2015.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Confiança: um meio de transformação social

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ricardo Gaiotti Silva é advogado, juiz eclesiástico no Tribunal Interdiocesano de Aparecida, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

Muito mais do que uma crise política, a sociedade brasileira vive uma crise de confiança. Este fato é mais sério do que se possa imaginar. Pense em uma mãe que não confia no médico do seu filho adoentado. Imagine descer a estrada de Santos – com suas curvas sinuosas – desconfiando da perícia do motorista. Exemplos assim nos levam a concluir: a desconfiança gera um estado de desespero e medo.
A confiança é geralmente relação entre “pessoas”. Há quem confia e aquele a quem é confiado. Há momentos em que confiamos, outros em que alguém confia em nós. Porém, queremos ser dignos de confiança, mas estamos demasiadamente feridos para depositar nossa confiança; consequentemente, este fluxo de relação fica “engarrafado” – quem vive em São Paulo sabe muito bem o peso desta palavra.
Quando não confiamos, começamos a medir tudo simplesmente por meio dos nossos conceitos e preconceitos. Passamos a ser nós mesmos o critério da justiça, da verdade, da beleza, etc.
O exemplo de “Narciso” – personagem da mitologia grega – ilustra bem o perigo da “fantasia” da autoconfiança. Ele, apaixonado por si mesmo e sua imagem, acabou morrendo afogado no lago quando contemplava o reflexo de sua “perfeição”.
O escritor inglês G. K Chesterton, em sua obra Ortodoxia, afirmou: “os homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos” /.../ “Toda autoconfiança não é simplesmente um pecado, total autoconfiança é uma fraqueza”.
Trato essas questões para apresentar o que para mim é o centro dos problemas sociais, econômicos e políticos em nosso país: a crise de confiança.
Não temos confiado nas pessoas, mas temos confiado demasiadamente em nós mesmos. Parece um absurdo, mas a autoconfiança desmedida, ao invés de gerar coragem, proporciona medo e desencontros. Como consequência, temos criado verdadeiramente espaços “engarrafados”, pois, “encantados” com nossa autoconfiança, estamos cada vez mais em uma sociedade de pessoas egoístas, fracas e tristes.
O remédio é a confiança!
A confiança caminha lado a lado com a solidariedade e com o senso de responsabilidade social, pelo simples fato de que não fomos criados para vivermos isolados, sendo nós mesmos a medida do que é bom, justo e belo.
A decisão corajosa de confiar, de se colocar a serviço dos outros, é capaz não somente de transformar os homens, mas também toda a sociedade. Cabe às pessoas de boa vontade o dever de testemunhar a confiança e a solidariedade.
Urge a manifestação dos homens de bem!  
Enfim, o fato é que, ao tomarmos consciência que nossos atos, nossa vida tem uma dimensão maior do que simplesmente a dos interesses pessoais, tudo muda, passamos a viver mais leves, sóbrios, seguros, contudo é preciso desprender-se das amarras do isolamento e caminharmos para a solidariedade, pois a confiança é um ato de coragem!
Se queremos um país mais justo, honesto, fraterno, solidário, o segredo é romper com a “fantasia” do amor próprio, da autoconfiança desmedida e colocarmos em prática uma velha regra que tem sido uma diretriz para a justiça: “Tudo aquilo que quer que os outros vos façam, fazei vós a eles (Mt 7,12)”, sendo nós mesmos o instrumento de mudança social. Que tal confiarmos?  
Jornal “O São Paulo”, edição 3043, de 18 a 24 de março de 2015.

Ajustes: duros, mas necessários

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Antonio Carlos Alves dos Santos é professor titular de Economia na Faculdade da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Em apenas dois meses, o Governo Dilma, através do seu Ministro da Fazenda Joaquim Levy, conseguiu organizar um conjunto de medidas que inclui cortes de gastos, elevação de receitas e redução de subsídios, que traduz-se em um ajuste fiscal de R$111 bilhões, necessários ao cumprimento da meta de superávit primário de 1,2% do PIB. Pedra fundamental no processo doloroso, mas necessário, de correção dos desequilíbrios legados pela equivocada política econômica do primeiro mandato da Presidente Dilma.
As medidas com impacto sobre os direitos do trabalhador, como alterações nas regras de acesso ao seguro-desemprego, abono salarial e pensão por morte, não foram, como era de se esperar, aceitas pelo movimento sindical que promete fazer tudo que estiver ao seu alcance para derrubá-las no Congresso. Elas, no entanto, são corretas, e visam corrigir distorções bem conhecidas. Trabalhar por um período curto de tempo, deixar o emprego e solicitar o seguro-desemprego tornou se uma pratica comum que desvirtua totalmente o objetivo do seguro-desemprego e implica em comprometimento de recursos que poderiam ser alocados em outras atividades. No caso da pensão por morte é conhecido o fenômeno popularmente conhecido como viúvas do Viagra ou o casamento no leito de morte para repassar a um membro da família estendida o recurso que seria perdido como o falecimento do ente querido. A proposta do governo é adequada à realidade do país e bem mais generosa que a adotada em países do mesmo nível de renda.
Uma outra medida polêmica é a redução dos subsídios. Argumenta-se que ela levaria à redução na criação de postos de trabalhos e ao encarecimento de itens importantes na cesta de bens consumidos pelas classes menos favorecidas da sociedade. Pesquisas, no entanto, demonstram que quando há aumento na oferta do número de empregos com base em subsídios, ele ocorre a um custo tão elevado que sairia muito mais barato repassar os recursos diretamente aos trabalhadores. No caso de subsídios de tarifas públicas os maiores beneficiários acabam sendo os consumidores de maior renda, que fazem maior uso destes serviços, por possuírem um número maior de automóveis, utensílios elétricos, etc.
A medida provisória com alteração na desoneração da folha de pagamentos - cujo impacto na geração de empregos é no mínimo controverso - encontrou forte oposição dos setores que dela se beneficiam e foi rejeitada pelo presidente do Senado Renan Calheiros, obrigando o governo a enviar ao Congresso um projeto de lei com urgência institucional. As consequências da decisão se fizeram sentir de imediato e em nada ajudam no processo de recuperação da credibilidade do país junto às agências de risco. Com esta decisão temerária, ele atrasa o início da reversão da desoneração da folha e poderá até mesmo comprometer todo o esforço fiscal proposto pelo Ministro Levy. Não podemos esquecer que o sucesso do ajuste fiscal é fundamental para que o país mantenha o “chamado grau de investimento” das agências de classificação de risco.
É preciso tomar cuidado para que o ajuste fiscal não coloque em risco os programas sociais que atendem os mais pobres, como o Brasil Sem Miséria e o Bolsa Família. Seria um grande equívoco reduzir a alocação de recursos para estes e outros programas que obtiveram grande sucesso na redução da pobreza absoluta. Eles serão ainda mais importantes ao longo deste processo doloroso de colocar a casa em ordem. Os pobres e os mais necessitados não podem arcar com os custos do ajuste e serem rebaixados para o mesmo nível em que se encontravam em 2010.

Jornal “O São Paulo”, edição 3042, de 11 a 17 de março de 2015.

A presença dos cristãos em tempos difíceis

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Durante os protestos contra o aumento das tarifas de ônibus, em 2013, um grupo de jovens de um movimento católico saiu de sua reunião e teve que atravessar a manifestação que ocupava a Paulista. A certa altura, o grupo entrou por uma rua lateral, percorrendo seu caminho, e notou que estava sendo seguido por uma pequena multidão de manifestantes, que pensavam que eles eram uma ala que fazia um caminho alternativo.
O padre que me relatou este episódio disse que naquele momento percebeu a responsabilidade de nós cristãos num momento difícil e conturbado como este que o Brasil atravessa.
Escândalos de corrupção, dificuldades no plano econômico que ameaçam também o social, deputados e senadores que parecem legislar em causa própria, crise hídrica ameaçando o abastecimento de água e energia... Um cenário que vai se tornando cada vez mais difícil, diante do qual parece difícil manter uma esperança razoável, levando ao ceticismo, ao conformismo ou à raiva.
No ano em que a Igreja reflete sobre sua relação e seu serviço à sociedade, é mais do que justo nos perguntarmos sobre nossa responsabilidade de cristãos diante do momento atual.
Em momentos críticos, as alternativas e esperanças verdadeiras não dependem de análises e ideologias, que podem até ser ferramentas úteis, mas não vão além disso. A capacidade de enfrentar e superar as dificuldades vem de acontecimentos que despertaram e despertam nossa humanidade, que nos fazem viver a solidariedade, fazer sacrifícios, construir na própria dificuldade.
Protestos e manifestações podem ter um grande impacto político, mas não ajudam a construir o novo se não refletem estes acontecimentos que despertam a humanidade e a solidariedade das pessoas. Sem esta base de construção, as forças se perdem e se desorientam, como os manifestantes que seguiram por uma outra rua só porque viram um grupo coeso entrar por ela.
Acontecimentos assim são cada vez mais raros numa sociedade individualista e consumista, mas são muito frequentes na vida da comunidade cristã – ao menos quando esta vive com sinceridade o mandamento do amor que Cristo nos deixou e procura ser uma presença na vida da sociedade.
São acontecimentos simples e que podem parecer até banais: a acolhida de alguém em necessidade, uma pequena obra social, um espaço de orientação humana e/ou espiritual, amizades sinceras e desinteressadas. O problema não é o tamanho do gesto, mas sim o quanto ele é um ponto de partida, um critério de juízo, que permite um outro olhar sobre a realidade – um olhar cheio de humanidade, solidariedade e desejo de construção.
Os cristãos não são nem melhores, nem mais inteligentes, do que os outros. Pelo contrário, somos iguais a todos. O que temos é um primeiro acontecimento, o encontro pessoal com Cristo, que tocou nosso coração e, a qualquer momento, diante de qualquer dificuldade, pode dar uma direção e um sentido à nossa existência, nas palavras de Bento XVI, na Deus caritas est, repetidas por Francisco em sua carta a Eugenio Scalfari (04/09/2013).
Mas este encontro, para se manifestar em todo o seu vigor, não pode ficar confinado a um limbo intimista. Ele tem que ser documentado em todos estes pequenos acontecimentos por meio dos quais a comunidade cristã pode irradiar, com humildade e sem pretensão, amor e esperança ao mundo. Daí nasce uma inteligência da fé que pode ser uma contribuição fundamental à sociedade brasileira atual.

Jornal “O São Paulo”, edição 3041, de 4 a 10 de março de 2015.

A desnutrição no Brasil


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

A desnutrição acabou no Brasil? Embora muitos digam que sim, não é verdade. Onde está a maioria das crianças desnutridas? Nas favelas e nas periferias dos centros urbanos. Qual é o tipo de desnutrição mais frequente em nosso país? A baixa estatura que ocorre quando a criança não cresce adequadamente devido à má alimentação, em quantidade e qualidade associada às infecções frequentes devido às más condições de saneamento básico.
Há mais de dois milhões de moradores em favelas no município de São Paulo e naquelas em que as condições de saneamento básico são precárias a proporção de crianças desnutridas pode chegar a 10% ou mais. Mas é difícil diagnosticá-las, pois seu acesso aos serviços de saúde básica é precário e intermitente.
Em geral, moram em áreas mais isoladas e tem uma condição familiar difícil que por isso, prejudica seu crescimento adequado, quer por falta de informação da mãe, quer por falta de condições de buscar recursos adequados para a família, ou ainda por dificuldade da mãe de cuidar de seus filhos pela sua vida atribulada. É comum entre essas famílias que poucas recebam o beneficio do Programa Bolsa Família, pois têm dificuldade de buscar esse recurso. Fazem a experiência da solidão e da impotência e muitas tem problemas com a justiça e um membro em conflito com a lei.
Esse é o quadro das famílias que recebem tratamento para seus filhos desnutridos no Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN) que possui duas unidades em São Paulo e uma em Maceió. Estes centros tratam de milhares de crianças anualmente, direta e indiretamente através dos serviços de saúde e educação. Fazem “busca ativa” dessas crianças nas comunidades e não esperam que elas cheguem sozinhas ou por conta própria nos postos de saúde ou hospitais. Essa experiência tem repassado sua metodologia a iniciativas semelhantes aos países da América Latina e Caribe assim como a alguns países africanos.
É inegável a melhoria das condições de vida de muitos pobres brasileiros desde 1970 quando a desnutrição começou a ser sistematicamente avaliada. Vários são os programas que ajudaram, como por exemplo, a aposentadoria rural e mais recentemente o Bolsa Família. Atribui-se também um grande impacto à melhoria das condições de moradia e a ampliação do acesso aos serviços de saúde para a queda na desnutrição, mais até do que os programas mais recentes de transferência de renda.
Embora morram menos crianças com desnutrição, outros problemas têm aumentado e fazem com que a desnutrição não possa ser considerada erradicada no Brasil, como a fragilidade da estrutura familiar, as famílias monoparentais, a violência e drogadição. E as crianças são as principais vítimas dessa nova situação.
ão basta a distribuição de bens materiais, alimentos ou dinheiro para a solução desse problema que é o mais infame de todos e o mais injusto: não dar a uma criança a condição de sobreviver adequadamente. Tão pouco é suficiente! É preciso ir ao encontro dessas mães, crianças e famílias e oferecer-lhes um suporte humano em todos os aspectos. No CREN chamamos esse método de intervenção de método da condivisão. É necessário um “fazer com” e não apenas um “fazer para” ajudando as pessoas a desenvolverem a autonomia e a responsabilidade para com a própria vida.

rnal “O São Paulo”, edição 3040, de 25 de fevereiro a 3 de março de 2015.

A educação escolar e a necessária contribuição da Igreja Católica

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Jair Militão da Silva é pedagogo, mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP, doutor e livre docente em Educação pela USP, membro da Academia Paulista de Educaçção e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP .

O Papa Bento XVI por ocasião de um seu pronunciamento sobre a situação das crianças e dos jovens da Itália falou da existência de uma “emergência educativa”. Penso que este conceito, pode prestar-se para um efetivo exame das políticas públicas de educação em nosso país e em muitos outros. Esta situação é real ou exagerada pelas lentes da mídia? Infelizmente, uma consulta aos professores de ensino básico no Estado de São Paulo feita pela APEOESP e pelo Instituto Data Popular confirma a existência da violência dos jovens, do egoísmo das crianças e da omissão do adulto. O aprendizado de como viver a própria humanidade pelo educando necessita do encontro com outro ser humano, autenticamente humano, diante do qual possa espelhar-se e constituir sua identidade. Estamos diante de uma emergência educativa que, para ser bem equacionada, necessita dramaticamente da humanização dos educadores e dos processos educativos.
Educar é propor um horizonte para a vida toda do educando e sempre é uma aposta antropológica, ou seja, repousa em uma visão de homem cujo núcleo básico é a crença de que cada ser humano possa aperfeiçoar-se.
Em uma perspectiva humanista integral, tal como a História mostra, o homem tem como pontos constituintes a razão e a capacidade de amar.
Pela razão o homem é capaz de compreender as situações em que se encontra e “ler” os acontecimentos à luz de princípios e valores. A razoabilidade das leituras do mundo pode ser aferida pelo diálogo que surge quando a razão é aplicada como forma de viver e partilhar os diversos problemas que a vida apresenta, superando a violência “sem razão”.
A formação da identidade acontece ao longo da vida de cada homem e tem como condicionantes o tempo, o espaço, as relações interpessoais, as heranças biológicas.
Em nossa cultura atual, com formas de atender aos desejos de modo quase imediato, tendo em vista a presença dos produtos prontos, das comunicações instantâneas, ocorre a sensação de que o condicionante temporal foi superado. Não dependeríamos mais do tempo para realizar nossos desejos e a “instantaneidade” nos leva a esquecer de que a formação da identidade humana acontece com uma duração temporal necessária. Igualmente, são necessárias práticas que se consolidem para formar uma identidade, que se institucionalizem, ou seja, que se tornem hábitos em cada pessoa e em cada grupo e, para isso, os rituais são fundamentais.
Grandes educadores criaram processos educativos que levaram em conta estas dimensões de tempo, espaço, ritmo humano, limites e possibilidades das pessoas. Como exemplo disso, pode ser citado São Bento, cuja Regra de Vida vem orientando a formação de identidades por mais de quinze séculos. Esta Regra funda-se, entre outras coisas, na organização do tempo, do espaço e das relações interpessoais.
A experiência da Igreja Católica é rica de conhecimento das práticas formativas que são efetivamente adequadas aos seres humanos. A humanização acontecida nas comunidades cristãs, nos diversos movimentos e novas comunidades pode contribuir para a construção da escola humanizada.
O risco é a criação de um hiato entre “vida de fé” e “vida social”, ou seja, vive-se fraternalmente no seio da Igreja e não saímos para o “mundo”, seja para as “periferias existenciais” ou mesmo para a escola de nossos filhos, sobrinhos, netos ou paroquianos.
Estamos diante de uma emergência educativa que, para ser bem equacionada, necessita dramaticamente da humanização dos educadores e dos processos educativos.
Jornal “O São Paulo”, edição 3039, de 19 a 24 de fevereiro de 2015.

Época de mudanças ou mudança de época?

Igreja e sociedade na Campanha da Fraternidade 2015

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Evaristo de Miranda é diretor do Instituto Ciência e Fé, autor de vários livros, entre os quais "Eu vim para servir - comunidade, Igreja e sociedade" (Loyola, 2014) e "Vai entender esses católicos..."(Loyola, 2014) .

Neste início do século XXI, a sociedade brasileira não vive uma época de mudanças, como a que marcou as décadas de 60 e 70 e o final do século passado. Vivemos sim, uma mudança de época. Quais as características marcantes dessa mudança na sociedade? Como estão hoje as relações entre a Igreja e a sociedade? Esse será o foco da Campanha da Fraternidade 2015.
Sobre essa questão, um primeiro indicador está na religião praticada pelos brasileiros. A cada ano, uma parte significativa da sociedade abandona a Igreja católica, mesmo se permanece cristã. No último Censo do IBGE, a Igreja teve uma redução da ordem de 1,7 milhão de fieis (12,2%) em dez anos. Pela primeira vez, em 500 anos, o número de católicos caiu em termos absolutos. Com essa tendência, em 25 anos, católicos e evangélicos terão números iguais na população. Essa igualdade e até inferioridade numérica já é vivida pela Igreja católica em varias cidades e periferias urbanas.
Esse fenômeno ocorre em toda a América Latina, mas em nenhum país com a intensidade observada no Brasil. Em 1970, 91,8% dos brasileiros eram católicos. Em 2010, eles eram 64,6%. Os evangélicos passaram de 5,2% da população para 22,2%. A proporção de católicos é maior entre as pessoas com idade superior a 40 anos. Os evangélicos têm sua maior proporção entre crianças e adolescentes, o que indica também o envelhecimento da população católica.
Como a proporção de cristãos mantém-se a mesma na sociedade (86,8%), há uma clara migração social de católicos para as correntes evangélicas. O povo não se tornou ateu, nem deixou o Cristianismo. O divórcio é com a Igreja romana. A Igreja fez uma opção preferencial pelos pobres e eles pelas igrejas evangélicas.
Qual a responsabilidade da Igreja frente a esse processo de “perda de fiéis”? Esse aspecto reveste-se de uma forte dimensão quaresmal. Os católicos encontram essa mudança religiosa no seu cotidiano e acostumaram-se à pluralidade religiosa resultante no trabalho, na comunidade e nas famílias. Mesmo quando ela se traduz por atitudes agressivas em relação à Igreja. Como está o irmão que deixou a Igreja? O que essa mudança trouxe para sua vida? Onde está o teu irmão (Gn 4,9)? O que ele encontrou de crescimento e realização pessoal ou familiar nessa mudança de igreja? Ninguém responde. Poucos sabem.
A hemorragia de fieis é cotidiana. Mesmo assim, não há nem mobilização institucional visível face à retração social da Igreja, nem engajamento claro na busca de resultados efetivos para reverter tal situação e seus processos. E o rebanho segue diminuindo.
Os católicos podem ficar indiferentes a esse processo? A o quê estará reduzida a Igreja católica daqui mais 50 anos? Todas essas transformações no relacionamento Igreja - Sociedade suscitam muitas interrogações. Tratei desses processos no livro “Eu vim para servir – Comunidade, Igreja e Sociedade”, publicado recentemente pela Loyola. O processo de abandono da Igreja e de envelhecimento dos fieis prossegue e tende a acelerar-se. O fermento de justiça e fraternidade, que tantos documentos episcopais reivindicaram como essencial na ação da Igreja na sociedade, não tem sido capaz de fazer crescer a massa do pão católico. Haverá para a Igreja na Campanha da Fraternidade 2015 um tema mais relevante a ser debatido do que o declínio do número dos que aderem à fé católica?
Jornal “O São Paulo”, edição 3038, de 11 a 17 de fevereiro de 2015.

A contribuição insubstituível da escola católica

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Cecília Canalle Fornazieri é doutora em Educação pela USP, tem experiência no ensino universitário e na gestão de escolas públicas.

Gosto de me perguntar por que nossa Igreja construiu, ao longo de séculos, tantos colégios, creches e hospitais ao invés de construir mais templos ou mesmo algum shopping ou supermercado. O questionamento pode parecer estranho, mas não tanto nos dias de hoje...
Se Deus cria o homem é porque isso é bom. Portanto se dedicar a hospitais se torna uma possibilidade de colaborar com sua obra trabalhando para que, em primeiro lugar, ela viva. Cuidar do outro, assim, é “cuidar” da própria obra de Deus, dialogar com Ele.
Em segundo lugar, o envio de seu próprio Filho a nós indica que não basta viver. Deus deseja a consciência do que vivemos a partir de uma experiência totalmente encarnada, isto é, fundada na realidade, na vida cotidiana, na história dos homens. E sabemos que, se formos a fundo na realidade – sem precisarmos de nenhum proselitismo – O encontraremos.  A escola é o espaço privilegiado dessa verificação.
É uma aposta arriscada, feita por quem tem fé porque acredita que, conhecendo a genialidade dos fenômenos físico-químicos, a maravilha das línguas, as lutas e desejos humanos, nossos alunos acabarão por se perguntar pelo autor, pelos porquês de si e do mundo. E, nessa hora, suplicamos a Deus para que a resposta esteja bem à sua frente, encarnada nas pessoas que o rodeiam na escola, no encontro com seus mestres e amigos.
Qualquer escola séria entende que é esse o caminho que faz com seus alunos, ao longo de anos: introduzir e acompanhar o conhecimento da realidade ajudando-os a compreender a grandeza do que veem. 
Mas há algo que a escola católica possa oferecer que lhe seja identitário, único?
A genial escritora Adélia Prado, ao ser indagada sobre quais os grandes temas da escrita, declara que “o grande tema é o real, a vida cotidiana, é, exatamente, aí – não há outro lugar – que a metafísica pisca para mim.”
Então o real, a realidade, é o ponto de partida para o encontro com Cristo e a escola é o lugar privilegiado do encontro entre a realidade e a consciência do homem porque, incrivelmente, não basta a “exagerada” genialidade do universo que se oferece a nós a cada segundo para que isso sequer seja percebido como algo interessante por nós! Aliás, muitas vezes, na escola, o que vemos é, justamente, o contrário: o estudo da realidade é tão descolado da contemplação do mundo e das próprias buscas dos alunos que o mundo do conhecimento passa a ser um peso do qual eles buscam se livrar e não mais um presente.
Mas qual a diferença entre uma escola confessional ou não confessional? A grande diferença reside no fato de que uma escola como a católica apresenta uma hipótese de sentido total da realidade que é ofertada por sua tradição revelada no encontro com as autoridades que a portam. Entendendo, aqui, autoridade em seu sentido original: auctoritas a partir do verbo augere: aumentar, portanto, aquele que faz o outro crescer.
O encontro com esses que fizeram e fazem um constante caminho de verificação da hipótese de significado da vida é a grande contribuição da escola católica e seu grande diferencial: ser uma companhia que ajuda as crianças e os jovens a se perguntarem sobre o sentido de cada coisa. Esses jovens, vendo como os adultos se relacionam com a realidade e como reconhecem seu Criador, podem mais facilmente fazer seu próprio caminho de verificação.
Jornal “O São Paulo”, edição 3037, de 4 a 10 de fevereiro de 2015. 

Leia também:
A educação escolar e a necessária contribuição da Igreja Católica

Temos o direito de decidir quem deve morrer?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Dalton Luiz de Paula Ramos é professor titular de Bioética da USP, membro da Pontifícia Academia para a Vida do Vaticano e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A recente morte de um brasileiro condenado à pena de morte por tráfico de drogas na Indonésia e certa insistencia no tema por parte de setorres da sociedade brasileira me fizeram retomar algumas reflexões sobre este tema (Reflexões parcialmente publicadas no Jornal Mundo Jovem, Novembro de 2005, Edição nº 362).
Em O Senhor dos Anéis, de J.R.R.Tolkien, Gollum é um personagem mau, repugnante, capaz de fazer coisas horríveis, até de matar. Em um dos diálogos do livro, Frodo, um personagem do bem, questiona o mago Gandalf que, junto com os elfos, povo sábio da floresta, havia aprisionado Gollum e não o haviam matado. Frodo diz que Gollum “merece a morte” ao que Gandalf, o personagem que representa a sabedoria, lhe responde:
“Merece! Ouso dizer que sim. Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muito sábios não conseguem ver os dois lados. Não tenho muita esperança de que Gollum possa se curar antes de morrer, mas existe uma chance... Meu coração me diz que ele tem ainda algum tipo de função a desempenhar, para o bem ou para o mal, antes do fim... De qualquer forma não o matamos... Os elfos da Floresta o mantêm preso, mas o tratam com toda a gentileza que têm em seus sábios corações.”
Eu mesmo já vivi, na minha família, um desses terríveis episódios de violência que ilustram o noticiário policial. Ví o sofrimento dos parentes da vítima. E estando frente ao assassino de um ente querido é realmente difícil não pensar “ele merece morrer”.
No episódio ocorrido na minha família uma voz se fez presente. Justamente a do irmão da vítima. Um sacerdote católico que, vendo o nosso sofrimento, e vivendo também o dele, antes de clamar por justiça nos repetia insistentemente: "Que tudo isso não abale a fé de vocês em Cristo!”.
Assim, se sou ajudado a vencer a dor e o tormento gerados pela violência que sofri, recupero a serenidade, e o coração volta seu olhar para onde nunca devia ter se desviado; começo a entender que tenho que olhar para Cristo e, a partir daí, não quero mais ser igual ao criminoso. Não quero me igualar ao assassino, propondo a sua morte. Não quero mais morte!
E como nos lembra Tolkien, por meio do sábio Gandalf, nenhum ser humano por mais inteligente que seja, nenhum cientista mesmo dispondo da maior tecnologia é capaz de ”dar a vida”. E nunca poderá! Se não somos senhores da vida, por que então podemos pretender ser senhores da morte?
Que violência a pena de morte! Mesmo se tratando do pior dos criminosos estaríamos respondendo a violência dos seus crimes com mais violência, o que, além de nos igualarmos ao criminoso, sabidamente não resolve os problemas de segurança da sociedade.
Mas quero deixar muito claro, para não ser incorretamente interpretado: não quero impunidade para o criminoso, ou tolerância para com o crime. A questão é qual o nosso papel frente ao crime e ao criminoso. Com um coração tocado por Cristo entendo que uma pessoa vale por aquilo que é e não pelas escolhas que faz, mesmo que faça escolhas terrivelmente equivocadas. Quero investir nele, o que é um grande desafio para nossa inteligência, sei que não é fácil, mas devemos tentar.  Não devemos querer destruir o criminoso; matá-lo significa desistir dele.
 Jornal “O São Paulo”, edição 3036, de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2015.

sexta-feira, 20 de março de 2015

A tragédia do Charlie Hebdo: quem começa o diálogo?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Iniciamos 2015 impactados pelo atentado ao Charlie Hebdo e seus desdobramentos. Pouca gente se deu conta, porém, que naqueles mesmos dias os extremistas islâmicos do Boko Haram mataram cerca de 2000 pessoas no ataque a uma cidade na nigeriana.
É compreensível que os jornais ocidentais deem muito mais cobertura a um fato ocorrido em Paris, afetando direta ou indiretamente a vida de grande parte de seus leitores, que a outro acontecido no coração da África, num contexto que parece totalmente estranho a seus leitores.
O problema é que estes acontecimentos estão interligados e exigem respostas conjuntas.
O uso das armas – ainda que necessário em muitos casos extremos – não tem resolvido o problema. Pelo contrário, parece só aumenta-lo. Neste sentido, a resposta da Igreja se revela cada vez mais sensata e abrangente: só o diálogo e o encontro entre religiões e culturas, associados a um desenvolvimento humano integral e justo de todos os povos, podem garantir a paz mundial.
Não é uma ideia recente. Está presente em todas as mensagens papais sobre o tema desde a Pacem in Terris de João XXIII – e até antes.
Evidentemente o caminho do diálogo não eliminará atos terroristas e ações extremistas. Nossa sociedade ocidental há poucas décadas se livrou de grupos como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão, e ainda enfrentamos franco-atiradores que disparam contra dezenas de inocentes e se suicidam (lembram-se do massacre de Columbine, nos EUA?).
O objetivo deve ser construir uma paz mundial onde estes episódios terroristas sejam casos de polícia (atos individuais, condenados por toda a opinião pública) e não de política (atos de grupos sociais que se sentem no direito de atentar contra os demais).
Mas os desdobramentos do atentado ao Charlie não parecem mostrar um grande espírito de diálogo e vontade de encontrar o diferente.
Houve a espetacular manifestação que reuniu mais de 1 milhão de pessoas em Paris, com uma “comissão de frente” que reuniu desde líderes europeus até Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina, e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense. Mas no dia seguinte os jornais estavam inundados com críticas a este ou aquele chefe de Estado e interpretações da manifestação como um gesto belicoso contra o terror e não como afirmação de um desejo de paz compartilhado.
Não faltou quem usasse os atentados para atacar as religiões em geral, associando-as a todas as formas de violência da história. Ou que interpretasse as manifestações contra o terrorismo como defesa do relativismo, da incerteza e do ataque a todas as crenças, desrespeitando a heterogeneidade evidente que existe entre mais de 1 milhão de manifestantes.
Estas pessoas não percebem que transformaram seu agnosticismo e seu relativismo numa nova religião, igual ás mais fundamentalistas que criticam, dispostas não à violência física, mas sem dúvida à violência intelectual, tão incapazes de diálogo e encontro quanto os extremistas que combatem.
E ainda criticam o Papa, acusando-o de um discurso ambíguo ou confuso. Não aceitam um discurso voltado ao diálogo, que procura entender as razões do outro, acolhe-lo em suas frustrações e seu desejo de realização, ao invés de massacrá-lo intelectualmente.
Quem começa o verdadeiro diálogo? Quem é capaz de amar sinceramente o outro, quem se sabe amado e por isso se sente livre diante do outro.
Nestes tempos difíceis, o cristianismo não é uma objeção à paz, mas um dos poucos, talvez o único, caminhos para construí-la num mundo laico carregado de ódio, soberba e divisão.

Jornal “O São Paulo”, edição 3035, de 21 a 27 de janeiro de 2015.

O Papa aos movimentos e novas comunidades: frescor do carisma e unidade eclesial

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Marcos Gregório Borges é filósofo e um dos fundadores do grupo Coração Novo para um Mundo Novo dedicado ao trabalho integrado entre movimentos e novas comunidades na perspectiva de uma maior presença cristã na vida pública. Participa como colaborador nas atividades do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Num discurso proferido em 22 de novembro de 2014, voltado aos participantes do III Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades, o Papa Francisco apontou alguns elementos que devem permear a caminhada daqueles que estão inseridos nestas novas realidades, às quais, segundo o Santo Padre, caminham para uma fase de “maturidade eclesial”: manter o frescor do carisma original, respeitar a liberdade das pessoas e buscar a comunhão eclesial.
Francisco lembrou que a novidade trazida por estas realidades não consiste tanto nos métodos e formas utilizados, mas antes “na disposição de responder com renovado entusiasmo ao chamado do Senhor”, entusiasmo sem o qual sequer existiriam, como demonstra a história de suas fundações. Desta forma, não se pode, lembra o Papa, cair na tentação de fiar-se em “esquemas tranquilizadores, mas estéreis”.
O Santo Padre apontou também para o desafio da comunhão eclesial. No entanto, não se ateve apenas a chamar a atenção para o sempre necessário esforço de conversão pastoral em vista da unidade com a Igreja hierárquica, integrando plenamente a vida da comunidade dentro da vida da Igreja, mas abordou outro aspecto importante que decorre da unidade: a comunhão para responder as questões mais sensíveis da sociedade de nosso tempo.
Segundo Francisco, “os movimentos e comunidades são chamados a trabalhar em conjunto para ajudar a curar as feridas causadas por uma mentalidade globalizada que coloca o consumo no centro, esquecendo-se de Deus e dos valores essenciais da existência”. Como um bom pastor, o Papa não apontou soluções prontas, mas apenas o caminho que considera adequado, na certeza de que os movimentos e novas comunidades, se forem capazes de manter o vigor próprio do carisma originário, possuem criatividade para responder a este desafio de forma nova.
Neste novo tempo, chamado pelo próprio Sumo Pontífice de “tempo de maturidade eclesial”, cada movimento e nova comunidade é convidado a uma experiência de abertura à diversidade de carismas, partilhando de seus dons com os demais e acolhendo a riqueza existente em cada realidade, em um caminho de autêntica e fecunda comunhão fraterna que possibilite o surgimento de novas e verdadeiras amizades.
Assim como cada carisma específico só pode desenvolver-se a partir da comunhão de um grupo mínimo de pessoas em torno de um objetivo em comum (ou seja, não basta existir o fundador se não existirem pessoas em comunhão com ele em torno daquele objetivo), não é possível a construção de iniciativas em comum, como nos aponta o Papa, se não existir verdadeira comunhão entre os carismas, e esta não pode ser construída a partir de meras reuniões e iniciativas estratégicas, mas sim a partir de um verdadeiro caminho de amizade, do qual nasce a confiança necessária para trabalhar com o outro em torno de um objetivo em comum.
Desta forma, neste novo tempo, peçamos ao Espírito Santo que alargue os nossos corações, e nos dê a coragem para avançarmos para águas mais profundas, nas águas profundas da diversidade dos carismas existentes, sem medo de acolhermos o novo que Deus quer nos dar a partir do dom da unidade.

Jornal “O São Paulo”, edição 3034, de 14 a 20 de janeiro de 2015.

Abra a felicidade?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Será que ao abrir a tampa de uma garrafa de refrigerante seremos realmente felizes? A ciência vem mostrando o contrário. Refrigerantes e comidas ricas em açúcar, sal e gorduras geram vício alimentar, estão na base do aumento da obesidade, e de muitos problemas de saúde como o diabetes e as doenças cardiovasculares.
“Amo muito tudo isso”, “com sabor de quero mais”, “exageradamente gostoso”, “um sabor inesquecível”: as indústrias de alimentos e bebidas têm explorado cada vez mais a associação entre prazer e felicidade, pois descobriram que esses processos associativos aumentam muito suas venda:
Mas prazer e felicidade não são sinônimos. Os antigos gregos diferenciaram bem essas duas experiências mostrando que podem até ser antagônicas. Usaram a palavra “eudaimonia” para descrever a experiência de felicidade (ter um espírito bom) e a palavra “hedonia” para descrever o sentimento de prazer. Diziam que pouco prazer traz infelicidade, mas muito prazer traz infelicidade também e que a felicidade esta no meio termo e na capacidade de autodomínio. Nem muito, nem pouco.
Para eles, a raiz da felicidade está em saber decidir, ter liberdade para decidir pelo bem. E a felicidade é proporcional ao ser livre das coisas materiais. Assim, o apego excessivo ou incontrolado a algo gera infelicidade. Um monge do deserto chamado Evágrio Pôntico dizia: “Seja o porteiro do seu coração e não deixe entrar nenhum pensamento sem interroga-lo. Interrogue cada pensamento individualmente e diga-lhe: você é um dos nossos ou um dos nossos adversários? Se for da casa, vai enchê-lo de paz. Mas se for do inimigo, vai perturbá-lo pela raiva ou provoca-lo pela cobiça”.
A ciência está cada vez mais de acordo com esses antigos sábios, pois estudos científicos têm mostrado que quando uma criança toma refrigerante seu cérebro memoriza o sabor, o aroma, o barulho de abrir a garrafa, as bolhinhas que faz e, para o resto da vida, desejará este prazer e o terá guardado em sua memória. E quando tiver oportunidade, tomará de forma excessiva essa bebida. Algo parecido com o vício do cigarro ou da cocaína. Todas as bebidas adocicadas e industrializadas tem esse efeito.
Se a mãe toma refrigerante frequentemente ou todos os dias durante a gravidez, o cérebro da criança terá uma atenção saliente e uma busca frequente por esta bebida após o nascimento. Isto acontece porque alimentos ricos em açúcar, gordura e sal geram, mais do que outros, emoções positivas que aumentam a motivação para obtê-los, tão logo são lembrados ou estão disponíveis ao alcance da mão. Ingeri-los é recompensador. Por quê?
Sal, açúcar e gordura eram  muito difíceis de serem obtidos na natureza. O sal era considerado ouro na antiguidade; e a gordura vinha da caça e exigia grande esforço para ser obtida. Por isso nosso cérebro procura preferencialmente estes ingredientes e os prefere em relação a outros.
A mentalidade hedonista proporcionou à indústria a motivação necessária para oferecer produtos baratos, à disposição de todos e a qualquer hora do dia. Essa situação gerou o descontrole e muitos problemas de saúde.
A solução? É o equilíbrio e cozinhar o máximo possível alimentos in natura. Voltar a comer só nas horas certas. Sentar à mesa com a família num ambiente calmo e tranquilo. Cuidar das conversas e falar do que é positivo. Deixar os problemas para outro momento e não ver televisão enquanto come.

Jornal “O São Paulo”, edição 3033, de 7 a 13 de janeiro de 2015.

A festa da gratuidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Para nós católicos, o Natal tal como celebrado hoje em dia sempre causa certo incomodo e mal estar. Parece uma estranha festa de aniversário para a qual o aniversariante não foi convidado – e às vezes parece nem mesmo ser bem vindo.
A mercantilização de todas as esferas da vida, típica de nossa sociedade, parece estar fazendo com o Natal exatamente o que o cristianismo fez com a festa do solstício de inverno, na Roma antiga.
Até 25 de dezembro, os dias do ano vão ficando mais curtos e a noite mais longa no hemisfério norte. A partir desta data o processo se inverte – indicando que o sol recomeça a “vencer as trevas” da noite. Os cristãos, reza a tradição, teriam se apropriado da festa romana que ocorria nesta data, comparando o nascimento do Cristo à vinda do sol vencedor das trevas da morte.
Hoje, quem se lembra da celebração romana do solstício quando pensa no Natal? A mesma coisa parece estar sendo feita pela nossa sociedade: a mercantilização da vida se apodera do Natal, que parece deixar de ser a festa do Cristo que vem para ser uma nova celebração do consumo.
Mas será só isso? Não, a festa do Natal do consumo – como todas as festas do consumo “inventadas” pelo comércio – traz em si uma contradição inevitável: o consumo não pode ser celebrado em si mesmo, um acontecimento ou uma pessoa tem que ser a razão da festa, o motivo do consumo. Isto é bem claro em nossos dias das mães, dos pais ou dos namorados.
O que se comemora neste Natal do comércio, neste aniversário sem aniversariante? O próprio “dom”, o presente, o prazer de dar. Para os adultos é o momento, cada vez mais raro em nossa cultura, em que se tem que reconhecer que dar alguma coisa a outro pode trazer felicidade.
Para todos, adultos e crianças, é a ocasião de esperar ou fantasiar um acontecimento de pura gratuidade, a existência de uma pessoa que vive distribuindo o dom da vida e da alegria – um Deus esperado, de modo declarado ou velado, por todos os homens; ou um Papai Noel de fantasia, uma ilusão que delicia nossas crianças, as anestesia para as contradições da vida, mas deixa aberta a ferida de uma gratuidade que parece impossível no cotidiano. Qual criança, acreditando em Papai Noel, não enfrentou a tristeza inevitável e inconsolável de saber que, terminada a festa, ele só voltará dali a um ano?
Para uma Igreja que deseja sair de si, ir ao encontro das pessoas, como pede o Papa Francisco, não basta condenar o consumismo e a comercialização do Natal. É necessário recuperar este desejo de amor, esta ânsia por um dom gratuito, que se manifesta – inevitável – mesmo neste Natal comercializado de nossos tempos.
O maior escândalo do Natal não é o delírio consumista dos que podem comprar, mas a carência dos que aparentemente nada tem para celebrar neste dia. Dos que estão “nas periferias da existência” vítimas da pobreza material e/ou da solidão sem sentido.
Temos que compreender que quando a Igreja propõe ao mundo o amor gratuito do Deus feito homem, propõe algo que corresponde profundamente ao coração de todos nós – sejamos adultos afobados querendo comprar uma felicidade que não está a venda, sejamos crianças excitadas com a perspectiva do brinquedo novo.
Temos que compreender que a felicidade não está na celebração fechada em si de um Natal consumista, mas no Natal que nos envia às periferias da existência, imitando o Aniversariante esquecido.

Jornal “O São Paulo”, edição 3032, de 17 de dezembro de 2014 a 7 de janeiro de 2015.

Realismo econômico e políticas sociais

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Antonio Carlos Alves dos Santos é professor titular de Economia na Faculdade da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Um dos principais desafios do segundo governo da Presidente Dilma é superar os vários equívocos na condução da política econômica do primeiro mandato, que podem por em risco inclusive as conquistas sociais do governo.
Por que é necessário mudar o rumo atual da política econômica? Isso não coloca em risco o que foi alcançado em inclusão social? Não seria o caso de esquecer o superávit primário e outras metas macroeconômicas?
A resposta passa pela analise de alguns  dados do mês de outubro: divida bruta (62% do PIB); conta corrente do balanço de pagamentos (déficit de 3,7% em relação ao PIB); inflação distante do núcleo da meta (acumulada ate outubro, 6,59%); crescimento pífio do PIB. 
Eles sinalizam que o experimento heterodoxo do primeiro mandato da Presidente Dilma, a “nova matriz macroeconômica (cambio desvalorizado, gastos públicos crescentes, juros baixos)   não apresentou o resultado prometido e deixou como legado graves desequilíbrios macroeconômicos, agravados pela situação pouco favorável da economia mundial.
Uma casa que não tenha um equilíbrio entre despesas e receitas não se sustenta. Por isso é necessário mudar até para manter os ganhos sociais já conseguidos.
O primeiro passo para evitar o agravamento do cenário econômico atual, preocupante mas não desesperador, e reverter estas expectativas desfavoráveis, foi dado com a escolha de uma equipe econômica com os requisitos necessários para uma boa gestão da política econômica.
A escolha do Joaquim Levy, pelo seu histórico profissional, causou certa surpresa e apreensão em relação a manutenção dos programas sociais. Mas não há razão para alarme: sua função, assim como de Nelson Barbosa, Ministro do Planejamento, e Alexandre Tombini presidente do Banco Central, será recuperar a credibilidade na política econômica, necessária à retomada do crescimento econômico com inclusão social.
Agora, é necessário implementar as medidas anunciadas na apresentação dos três ministros e reafirmadas pela Presidente Dilma. Estas medidas implicam em cortes de gastos, aumentos de impostos e contribuições e revisão da política adotada pelo BNDES, cujo foco será redirecionado para pequenas e medias empresas, já que as grandes têm condições de obter financiamento junto ao setor privado.  Elas são necessárias para viabilizar a meta de superávit primário (gastos menos despesas) de 1,2% do PIB em 2015 e ao redor de 2% em 2016 e 2017.
No curto prazo – primeiro semestre de 2015 – estas medidas poderão se dolorosas, podendo, ate mesmo levar ao aumento do desemprego e a inflação acima do teto da meta. Mas serão sacrifícios justificados se as expectativas negativas forem revertidas.
Uma política fiscal consistente, transparente e sem o uso de contabilidade criativa, é a pedra fundamental de uma política econômica a serviço da construção de um país socialmente mais justo. A incompatibilidade entre esta nova política econômica e a preocupação social é falsa. Trata-se, de resgatar o tripé macroeconômico (superávit primário, cambio flutuante e foco em atingir a meta de inflação de 4,5% ao ano) que foi o alicerce sobre o qual se construiu a política social do Governo do Presidente Lula.
Não é preciso reinventar a roda para traçar uma rota consistente de crescimento econômico com justiça social. É apenas necessário não confundir ideologia com política econômica. 
Os eleitores mostraram que querem justiça social, caberá à nova administração honrar o compromisso assumido com eles.

Jornal “O São Paulo”, edição 3031, de 11 a 16 de dezembro de 2014.

Lei 2004, de 1953: a Petrobras

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Wagner Balera é professor titular de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Foi motivo de enorme orgulho para os brasileiros a criação, pela Lei n. 2004, de 1953, da Petrobras. Tratou-se do coroamento da campanha nacionalista que empunhava a bandeira “O petróleo é nosso”.
Ocorre que, ao longo dos anos, a Petrobras, maior empresa brasileira, foi cada vez mais se enroscando em confusões que culminaram com a falta de publicação, no tempo adequado, dos seus resultados financeiros.
Talvez um dos males principais que essa gigantesca empresa estatal tenha sofrido ao longo desses mais de 60 anos de existência ressalte à toda evidência: a falta de transparência na gestão.
Só essa obscuridade pode explicar (mas jamais justificar) que as obras e atividades da Petrobras que, afinal, não interessam tão somente aos acionistas privados, mas a todos nós, que indiretamente pagamos para que o Brasil tivesse uma Petrobras, custassem sempre muito mais caro do que poderiam custar, demorassem sempre muito mais tempo do que deveriam demorar para serem concluídas.
Tudo isso agora veio a furo porque tocaram em outra das feridas desse organismo cheio de feridas em que se transformou a Petrobras.
Os cargos de comando da estatal, que deveriam ser ocupados pelos mais capacitados, são notoriamente loteados entre os partidos políticos e se tornam alvo preferencial dos políticos que, a todo custo, querem indicar quem ocupará postos de relevância na empresa.
Nós brasileiros devemos reiniciar a campanha dos anos cinquenta do século passado. Recomecemos com a campanha do “petróleo é nosso”, com um novo mote: a Petrobras é nossa. Que ela volte para nós, devidamente dedetizada, descupinizada e desratizada e que possa se preparar para as competições futuras limpa da sujeira que a invadiu de modo brutal e gritante.
Não que, a priori, a privatização da Petrobras seja um mal em si mesmo.
Se bem refletirmos sobre os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, nos recordaremos do conhecido princípio da subsidiariedade. Pio XI, na Quadragesimo anno (1931) já alertava que:
“é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e capacidade, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é subsidiar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los".
Nos começos da industrialização do Brasil, notadamente nos anos quarenta do século passado, o Estado se viu na contingência de promover atividades econômicas em setores estratégicos. É o caso do tripé siderurgia, mineração e petróleo.
Quanto à siderurgia, foi erigida a Companhia Siderúrgica Nacional. Depois, operou a subsidiariedade e a área se desenvolveu de modo adequado, permitindo-se que o Estado saísse de cena com o Programa Desestatização. Quem cotejar os resultados da CSN quando tocada pelo Estado com os resultados posteriores, a revelar quão ineficiente gestor é o Estado.
É, igualmente, o caso da Vale do Rio Doce, incumbida de explorar o imenso potencial de minérios do Brasil. Enquanto estatal, amargava crescentes prejuízos. Depois de privatizada, revelou incrementos nos ganhos dos acionistas.
Tudo na conformidade do princípio da subsidiariedade.
Não é o momento de se mexer na Petrobras, para que não entremos no jogo dos que querem detrata-la para, depois, comprarem a preço vil. Mas, o debate é urgente e necessário.
Afinal, o pré-sal está aí.
Jornal “O São Paulo”, edição 3030, de 3 a 9 de dezembro de 2014.

O Sínodo e o estupro na festa

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Nas últimas semanas, reportagens sobre festas que acontecem dentro de grandes universidades paulistas, onde até estupros ocorreram, chocaram a opinião pública.
O problema não é novo: violência e até mortes já foram amplamente noticiadas em recepções a calouros, o consumo de álcool e drogas nos ambientes universitários também é bem conhecido – sendo até alvo de debates sobre a liberação ou não da maconha.
Choca, contudo, o fato de que num local onde teoricamente estão os jovens mais promissores e bem preparados, aqueles que mais receberam e dos quais portanto mais se espera, aconteçam manifestações de verdadeira barbárie.
Mesmo os mais liberais percebem que aí a autonomia individual e a sexualidade ultrapassaram os limites e impedem o amadurecimento de uma personalidade livre, capaz de realizar-se pessoalmente e contribuir para o bem comum.
Evidentemente existe um problema institucional. As universidades não podem, em nome da autonomia da comunidade, abdicar de sua responsabilidade educacional perante os jovens. Além disso, o problema ultrapassa a questão educacional e adentra na esfera policial e da segurança pública.
Mas, para o conjunto da sociedade, o problema permanece se a festa e seus abusos não acontecem no campus, e sim nas ruas próximas, em baladas ou mesmo nas casas dos jovens.
Esta é a etapa derradeira da crise da família atual – incapaz em grande parte dos casos de acompanhar, com amor e sabedoria, o jovem que inicia a sua vida adulta e começa a se tornar independente. Mas também é o começo da crise de uma nova geração de famílias – pois estes jovens terão mais dificuldade que seus pais para entender o amor e a responsabilidade de uma vida a dois.
Por isso, a violência que acontece nestas festas universitárias tem tudo a ver com as reflexões do Sínodo das Famílias.
O problema não reside na curiosidade natural dos jovens, tentados a testar a validade da norma e os prazeres ocultos no ilícito. Nem na falta de rigor das famílias e das escolas, pois o rigor atiça a curiosidade e as instituições não têm força para controlar os jovens numa sociedade complexa.
A tragédia dos jovens está em encontrarem um mundo adulto onde a vida parece não ter outro sentido que não o prazer, o consumo e a ascensão individual – novos ídolos aos quais deverão imolar sua juventude, seu desejo de vida plena e até sua felicidade.
O prazer da festa deixa de ser celebração da vida, para ser uma fuga, um poço sem fundo, onde cada prazer se revela frustrante e exige mais intensidade e emoção, até chegar à violência.
Nosso primeiro desafio é mostrar aos jovens outro modo de viver. Demonstrar, sem moralismo ou rigidez doutrinal, com nosso testemunho, que amor, responsabilidade, construção, felicidade e prazer não são opostos. Pelo contrário, a felicidade e o prazer mais plenos estão ali onde existe amor, responsabilidade e construção.
Nossos jovens precisam não só do testemunho da coerência do Evangelho, mas (talvez até mais) do testemunho da alegria do Evangelho.
Depois, valorizar e fortalecer a vida de comunidade, entre nós e entre nossos jovens. Para os jovens, uma comunidade firme e sadia é a manifestação mais imediata e segura do amor de Deus. No seio de uma comunidade, o jovem poderá errar, mas sempre terá mais chance de reencontrar o caminho.
A Igreja já considerou que a família era seu esteio. Agora está na hora de percebermos que a Igreja é o esteio da família.

Jornal “O São Paulo”, edição 3029, de 26 de novembro a 2 de dezembro de 2014.

As origens e a crise atual da Universidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Nas últimas semanas, reportagens sobre festas que acontecem dentro de grandes universidades paulistas, onde até estupros ocorreram, chocaram a opinião pública.
O problema não é novo: violência e até mortes já foram amplamente noticiadas em recepções a calouros, o consumo de álcool e drogas nos ambientes universitários também é bem conhecido – sendo até alvo de debates sobre a liberação ou não da maconha.
Choca, contudo, o fato de que num local onde teoricamente estão os jovens mais promissores e bem preparados, aqueles que mais receberam e dos quais portanto mais se espera, aconteçam manifestações de verdadeira barbárie.
Mesmo os mais liberais percebem que aí a autonomia individual e a sexualidade ultrapassaram os limites e impedem o amadurecimento de uma personalidade livre, capaz de realizar-se pessoalmente e contribuir para o bem comum.
Evidentemente existe um problema institucional. As universidades não podem, em nome da autonomia da comunidade, abdicar de sua responsabilidade educacional perante os jovens. Além disso, o problema ultrapassa a questão educacional e adentra na esfera policial e da segurança pública.
Mas, para o conjunto da sociedade, o problema permanece se a festa e seus abusos não acontecem no campus, e sim nas ruas próximas, em baladas ou mesmo nas casas dos jovens.
Esta é a etapa derradeira da crise da família atual – incapaz em grande parte dos casos de acompanhar, com amor e sabedoria, o jovem que inicia a sua vida adulta e começa a se tornar independente. Mas também é o começo da crise de uma nova geração de famílias – pois estes jovens terão mais dificuldade que seus pais para entender o amor e a responsabilidade de uma vida a dois.
Por isso, a violência que acontece nestas festas universitárias tem tudo a ver com as reflexões do Sínodo das Famílias.
O problema não reside na curiosidade natural dos jovens, tentados a testar a validade da norma e os prazeres ocultos no ilícito. Nem na falta de rigor das famílias e das escolas, pois o rigor atiça a curiosidade e as instituições não têm força para controlar os jovens numa sociedade complexa.
A tragédia dos jovens está em encontrarem um mundo adulto onde a vida parece não ter outro sentido que não o prazer, o consumo e a ascensão individual – novos ídolos aos quais deverão imolar sua juventude, seu desejo de vida plena e até sua felicidade.
O prazer da festa deixa de ser celebração da vida, para ser uma fuga, um poço sem fundo, onde cada prazer se revela frustrante e exige mais intensidade e emoção, até chegar à violência.
Nosso primeiro desafio é mostrar aos jovens outro modo de viver. Demonstrar, sem moralismo ou rigidez doutrinal, com nosso testemunho, que amor, responsabilidade, construção, felicidade e prazer não são opostos. Pelo contrário, a felicidade e o prazer mais plenos estão ali onde existe amor, responsabilidade e construção.
Nossos jovens precisam não só do testemunho da coerência do Evangelho, mas (talvez até mais) do testemunho da alegria do Evangelho.
Depois, valorizar e fortalecer a vida de comunidade, entre nós e entre nossos jovens. Para os jovens, uma comunidade firme e sadia é a manifestação mais imediata e segura do amor de Deus. No seio de uma comunidade, o jovem poderá errar, mas sempre terá mais chance de reencontrar o caminho.
A Igreja já considerou que a família era seu esteio. Agora está na hora de percebermos que a Igreja é o esteio da família.

Jornal “O São Paulo”, edição 3029, de 26 de novembro a 2 de dezembro de 2014.

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