segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Meu Deus, basta!

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Basta, meu Deus, basta de tanto sofrimento! Este artigo tem a finalidade de pedir a você leitor para rezarmos juntos pelos refugiados. Calcula-se que sejam 60 milhões de refugiados. Um número ímpar, mesmo em relação à Segunda Guerra Mundial. Peçamos a Deus, todos juntos, para que Ele acabe com o sofrimento de tantas famílias de refugiados! Desfilam-se diariamente diante dos nossos olhos, nos jornais, fotos de crianças, mulheres, homens jovens, idosos que pagam o preço de uma casa, um carro, para serem transportados por traficantes para a Europa. Perderam tudo, deixaram trabalho, deixaram muitas vezes parentes mortos brutalmente.
Em número já incontável de vezes, lemos que os traficantes de pessoas os abandonam em barcos à deriva, ou eles mesmo afundam os barcos no meio da travessia. Outras vezes, os barcos soçobram durante o resgate por serem muito frágeis e estarem superlotados. Li sobre uma náufraga que não conseguiu sobreviver que, ao ser retirada do mar, foi encontrada com o terço na mão. Pensei que só pode ter havido festa no céu quando ela chegou lá, pois nós cristãos sabemos o fim dos injustiçados deste mundo, que Cristo quis, misteriosamente, abraçar carregando-os consigo na cruz.
Os jornais relatam ainda que o número de mortes tem aumentado porque se tem elevado as medidas de repressão por parte dos países europeus. A Hungria está construindo um muro na divisa da Sérvia para impedir sua chegada. Mais de um milhão dos que conseguiram chegar à Europa foram expulsos. Alguns países europeus têm colocado soldados armados que agem violentamente contra famílias com crianças de colo que chegam ao seu território. Mesmo no Brasil, a vinda dos haitianos, após o terremoto que devastou o seu país, tem encontrado muitas hostilidades. Recentemente alguém atirou em vários deles.
A Europa envelhece, falta mão obra, o número de nascimentos só diminui com o maciço controle de natalidade. O número de europeus encolhe a cada ano. A Europa precisa de imigrantes para financiar aposentadorias e permitir boa condição de vida para seu número crescente de idosos. Análises econômicas mostram as vantagens de ter mão de obra baseada na imigração. Por que então não organizar um fluxo migratório de famílias cujos países estão enfrentando guerras loucas, cruentas, e sem sentido? Assim fez o governo de São Paulo no início do século 20, quando chegaram aqui, de forma relativamente organizada, cerca de 6 milhões de imigrantes europeus. Esse quadro revela o quão grande é o egoísmo e a visão mesquinha do velho continente. A ONU tem pedido insistentemente para os países da União Europeia receberem os imigrantes, feito propostas e exortado esses países a se organizarem. As políticas de aumento de repressão aos imigrantes só tem aumentado o número de traficantes de pessoas, o seu ganho e a crueldade do processo.
O que nós, brasileiros, que vivemos tão longe geograficamente dessa tragédia humana, podemos fazer? O Brasil, por meio da Cáritas e outras organizações, tem procurado dar sua contribuição na acolhida a estes refugiados e nós, caro irmão, podemos fazer uma fundamental: rezar. Podemos pedir ao Senhor que, na Sua infinita misericórdia, mude a sorte de tantos refugiados, abra espaço para eles. Podemos pedir que este mal do nosso tempo termine. Podemos pedir que Nossa Senhora interceda pelos europeus e "co-mova" o coração de pedra dos cristãos da primeira hora. Que o povo europeu pressione os seus governos para abrir as portas, colocar mais água no feijão, e não para aumentar as barreiras como tem acontecido. O Senhor responderá a quem pede com insistência e comunitariamente.
Jornal "O São Paulo", edição 3067, de 09 a 16 de setembro de 2015.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

A caridade que constrói a sociedade: as Santas Casas de Misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Marli Pirozelli N. Silva, historiadora, mestre em Filosofia da Educação, é professora de Doutrina Social da Igreja no Centro Universitário da FEI e coordenadora do Centro Cultural Abaré.

A caridade – caritas – sempre esteve no centro da vida da Igreja. As inúmeras obras sociais surgidas ao longo dos séculos demonstram que a caridade nunca foi compreendida como um serviço complementar à fé, mas sim como expressão da própria natureza do cristianismo.
Foi no fluxo de vida nova trazida pelo cristianismo que floresceram as primeiras iniciativas de cuidado e proteção aos doentes, aos mortos insepultos nos tempos de pestes e aos famintos. Desta forma, foram se estruturando grandes obras sociais, tais como as Santas Casas, que desafiam o tempo, adaptando-se e renovando-se para atender às novas demandas sociais.
O lançamento do livro de Pe. Antonio Pucca, As Santas Casas de Misericórdia, de Florença a São Paulo, a epopeia da caridade (São Paulo: Companhia Ilimitada, 2015) lança luz sobre a Santa Casa de São Paulo, cujas origens remontam à Irmandade de Misericórdia de Florença, criada em 1244, passando depois pela fundação da Misericórdia em Portugal até chegar às terras brasileiras. A primeira Santa Casa de Misericórdia brasileira foi fundada em Olinda, em 1539. Seguiram-se então as Santas Casas de Salvador, Santos, Rio de Janeiro e São Paulo, esta última uma referência nacional no atendimento à saúde. O livro ilustra a abrangência mundial destas obras com algumas obras sociais nos EUA (charities) e traz exemplos de outras obras de caridade brasileiras atuais, nas quais o cuidado com o outro supera os desafios e os as limitações econômicas.
Os números das Santas Casas do Brasil são impressionantes: respondem por 2/3 dos leitos hospitalares do país e ao menos 60% dos seus serviços são dedicados aos pobres. Somente a Santa Casa de São Paulo realiza 730.000 atendimentos ao ano, sendo reconhecida também pela excelência em ensino e pela qualidade de seus centros de pesquisa e tratamento, apesar dos atuais problemas gerados pela falta de recursos.
Assim como outras obras de caridade, nascidas da iniciativa de pessoas e grupos empenhados na busca de soluções eficazes para os problemas sociais, as Santas Casas atuam silenciosamente no dia a dia, socorrendo as necessidades dos mais pobres, valorizando a dignidade humana e promovendo o desenvolvimento social.
Estas instituições constituem uma verdadeira riqueza social. Cabe ao Estado valorizá-las e protegê-las por meio de ações subsidiárias e de uma legislação adequada, para que possam se desenvolver de forma autônoma. A Doutrina Social da Igreja nos ensina que o Estado deve atuar de acordo com o princípio da subsidiariedade, valorizando a liberdade, a iniciativa e a responsabilidade da sociedade na solução de seus problemas e na condução do desenvolvimento, auxiliando os grupos sociais sem substituí-los ou torná-los dependentes. O Estado brasileiro deve reconhecer o papel decisivo que estas obras desempenham no fortalecimento da sociedade, pois atuam diretamente na construção do Bem Comum, cuidando do interesse coletivo e desempenhando uma função pública, embora não estatal.
Instituições como a Santa Casa não oferecem a solução para todos os problemas sociais, mas constituem uma expressão visível da caridade, da qual nasceram. São lugares onde a pessoa pode sentir-se amada e dar-se conta do próprio valor, onde a dor e sofrimento encontram conforto e esperança. São sinais vivos da presença de Deus, um farol que ilumina a vida de todos os que chegam até elas em busca de acolhida, assim como a de toda a sociedade.
Jornal "O São Paulo", edição 3067, de 02 a 08 de setembro de 2015.