segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O acolhimento da pessoa refugiada

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Carlos A. O. Camargo é vice-diretor da Caritas Arquidiocesana de São Paulo e membro do Pontifício Conselho Cor Unum.

É notícia corrente nos veículos de comunicação que milhares de pessoas estão abandonando seu próprio país com propósitos legítimos de buscar proteção à sua vida. Qualquer pessoa que consegue chegar a uma fronteira pedindo proteção tem o direito de – e precisa – ser acolhida prontamente. A horrenda tragédia a que são submetidos esses refugiados é fruto de graves estruturas de injustiça social, que atiçam conflitos de diversas naturezas ao redor do mundo.
A Igreja Católica considera a ajuda aos refugiados uma obrigação sua essencial, lembrando a responsabilidade evangélica de oferecer asilo aos que o procuram: "todas as vezes que fizestes isto a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!" (Mt 25,40). A ajuda deve se estender para além do estritamente material e não se limitar ao simples fazer algo, mas envolve a participação solícita nas necessidades e no sofrimento do outro. Nesse sentido, no âmago da ação caritativa há um dar-se a si mesmo, isto é, a própria pessoa está presente na oferta àquele que recebe sua atenção, dando testemunho fértil e coerente da fé manifestada num amor que percebe a presença de Cristo nessa relação.
A Caritas Arquidiocesana, através do seu Centro de Referência para Refugiados, é o órgão da Igreja Católica de São Paulo que cuida dos primeiros passos da assistência à maior parte das pessoas que chegam ao Brasil pedindo a proteção que lhe é legalmente garantida pela sua condição de solicitante de refúgio. É um trabalho desenvolvido junto com o Alto Comissariado das Nações Unidas para o Refugiado (ACNUR) e o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), além da indispensável colaboração de várias outras entidades. Esse serviço objetiva garantir a assistência, proteção e integração dos refugiados nas estruturas da sociedade, contribuindo para que resgatem sua autoestima e revelem suas próprias habilidades, para que se tornem independentes e respeitados onde estabelecerem sua nova vida.
Entretanto, o interesse em compreender e ajudar a aliviar o sofrimento dos que chegam solicitando o refúgio contrasta, às vezes, com o medo do excessivo aumento numérico deles, pois isso passa a provocar uma impressão de confronto com culturas estranhas, que poderiam perturbar os hábitos de vida já estabelecidos na sociedade que os recebe. Os que antes eram vistos com simpatia ou compaixão, mas moravam em lugares longínquos, passam a ser inoportunos e rejeitados, quando se tornam demasiadamente vizinhos. Além disso, parte do preconceito também ocorre por que os refugiados são indevidamente responsabilizados, às vezes inconscientemente, por algum dano que eles eventualmente teriam provocado na sua terra de origem, ou que poderiam vir a provocar em sua nova terra de acolhida.
Talvez esses estrangeiros recém-chegados e que pretendem construir uma nova vida por aqui, depois de penosa jornada, pudessem ser mais bem compreendidos se os meios de comunicação divulgassem os diversos exemplos reais de acolhimento fraterno surgidos da generosidade humana, de forma a repercutir na opinião pública como uma atenção positiva de maior tolerância. De fato, a capacidade do convívio entre as pessoas, independentemente de suas especificidades que podem distinguir umas das outras, está estritamente ligada ao desenvolvimento de uma mentalidade de acolhimento, fundado na caridade, que deve ser suscitada, quer na intimidade de cada uma, quer no senso comum da coletividade.
Jornal "O São Paulo", edição 3074, de 21 a 27 de outubro de 2015.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Por que sofremos?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Padre Reginaldo Manzotti é coordenador da Associação Evangelizar é Preciso e pároco reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba (PR). Apresenta diariamente programas de rádio e TV.

Tenho percebido através das partilhas de vida, seja no rádio, na TV ou mesmo pessoalmente, que muitos não sabem lidar com o sofrimento e, por isso, hoje reflito sobre esse assunto.
O Senhor permite em sua sabedoria e pedagogia da Cruz a provação e a tribulação para nos tocar. Talvez pela atrição para o grande anseio de Deus, que cheguemos à contrição. Ele tem um propósito para todos nós e não permitiria algo ruim em nossas vidas somente para nos prejudicar.
Deus só permite aquilo que pode se transformar em algo bom. Ele não brinca conosco, Ele cuida de nós como algo muito valioso. Nós somos muitos preciosos para Ele. Tudo que falamos de Deus é pouco no que se refere ao que verdadeiramente Ele é. Se nós conseguimos imaginar que Deus é capaz de nos ferir para nos curar é porque ele nos reserva algo de bom, como nos diz Oséias: “Ele nos feriu e há de tratar-nos, Ele nos machucou e há de curar-nos” (Os 6, 1).
Às vezes, Deus pode nos ferir para nos purificar. Não por crueldade ou não nos amar, mas porque nos criou à sua imagem e semelhança. Porque nós somos preciosos para Ele. Ele sabe o quanto vivemos presos em vícios, em coisas fúteis e situações que dão alegrias muito passageiras, mas Ele quer o melhor de nós.
Deus permite passarmos por uma noite escura da fé, como viveu Madre Tereza de Calcutá, para crescermos espiritualmente. O próprio Jesus, na Sexta-feira Santa, se sentiu abandonado pelo Pai a ponto de dizer: “Eloi Eloi lama sabactani?” – Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Mas ele não desistiu. Ferido, Ele provou o silêncio profundo de Deus, mas não recuou.
Nossa Senhora também estava ferida, aos pés da cruz de Jesus, porque não deve ter sido fácil contemplar o Filho, inocente, morrendo daquela forma. Mas ela foi capaz de sepultá-lo, se encontrar e rezar com aqueles que o abandonaram. Ela o fez na esperança da madrugada da Ressurreição.
Muitas vezes, somos insensíveis aos apelos de Deus. Formamos um escudo em nós mesmos e a flecha divina tem dificuldade de penetrar, pois quanto mais sedimentados aos apegos das paixões, ao mundanismo, à satisfação pela satisfação, menos sensibilidade temos para Deus. E por isso sofremos!
Deus não tenta ninguém, mas Ele permite que sejamos tentados. Ele é forte e poderoso, mas o inimigo existe e quer semear em nosso coração a dúvida e a confusão. Nossa alma tem fome de Deus e precisa ser alimentada através do Sacramento da Eucaristia, ela é o alimento eterno.
Temos necessidade de comungar. Ao receber Jesus, Ele que nos envolve com seu amor. Devemos dar mais valor a Eucaristia, é preciso, após cada comunhão, adorar Cristo Vivo dentro de nós, isso irá nos curar.
Quem dera deixássemos nos encontrar com Deus. A cada momento Ele tenta nos encontrar. Caso deixemos de experimentar o amor de Deus e se em algum momento da vida nos cansarmos e nos dermos conta de nossa imperfeição, nos coloquemos diante Dele e  recomecemos. Ele estenderá as mãos para que cheguemos mais perto de Seu amor, pois a Sua misericórdia é infinita.
Deus abençoe!
Jornal "O São Paulo", edição 3073, de 14 a 20 de outubro de 2015.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

As etapas de preparação ao sínodo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Pe. Denilson Geraldo, SAC, é professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e membro da Cátedra André Franco Montoro de Direito da Família da PUC-SP. 

O Sínodo é um evento eclesial e envolve a todos os católicos, principalmente pelo tema que será tratado: a família. Paralelamente ao Sacramento do Matrimônio, vemos que o Sínodo exige uma preparação em três etapas. A primeira é a preparação remota que significa a aceitação das determinações do Vaticano II, pois o Sínodo dos Bispos tem desempenhado uma notável aplicação dos ensinamentos e orientações do Concílio, seja doutrinal, seja pastoral na vida da Igreja universal. A chave sinodal para leitura do Concílio tornou-se um lugar de interpretação, aplicação e desenvolvimento do próprio Vaticano II.
Do ponto de vista organizacional, a concretização de um Sínodo supõe longa preparação. Os trabalhos iniciam-se com uma comissão constituída no Sínodo anterior e com a elaboração de um questionário sobre o tema tratado. A comissão, com base nas respostas provenientes da ampla consulta, elabora uma síntese chamada Lineamenta (linhas gerais), sendo enviada novamente aos bispos, e com as respostas se elabora o Instrumentum laboris (instrumento de trabalho). Ambos os documentos são amplamente divulgados e colocados à disposição, como de fato aconteceu neste Sínodo sobre a família. Embora seja público, este Instrumento de trabalho tem apenas caráter provisório do documento que será objeto de discussão durante o Sínodo, não é, pois, uma versão preliminar das conclusões finais, mas apenas um texto de apoio para centralizar a discussão sobre o tema do Sínodo. Esta segunda etapa pode ser chamada de preparação próxima ao Sínodo que exigiu participação e interesse pelas questões colocadas pelo Papa.
Sínodo significa um caminho feito juntos, é uma experiência da unidade e da catolicidade da Igreja, é um organismo representativo do episcopado solicitado pelo Vaticano II no Decreto sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja e que, por sua natureza, e pelo número de pessoas envolvidas se trata do maior evento da Igreja, depois de um Concílio Ecumênico. Sua celebração significa a busca de sintonia com os problemas atuais, sobretudo de natureza pastoral, examinando os sinais dos tempos, procurando adaptar os meios e métodos do apostolado às necessidades atuais e as condições de mudança da sociedade, levando ao fortalecimento dos laços entre os bispos como um verdadeiro sínodo episcopal. Esta é terceira etapa, a preparação imediata, isto é, o desejo de não caminhar sozinho, mas com a Igreja. O significado prático desta disposição interior é a comunhão eclesial manifesta na obediência sincera e dócil ao Papa e aos bispos, bem como, na oração pelo Sínodo e nas obras de caridade que são capazes de abrir o coração e a mente para entender os desígnios de Deus para o momento que vivemos.
O intercâmbio de informações e sugestões à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja que acontece no Sínodo está em benefício a toda Igreja para conservar a comunhão na pluralidade das culturas e situações. Para que isto aconteça, tudo dependerá da aplicação real que é dada às suas conclusões, sob a liderança das Conferências Episcopais e das Igrejas locais. Assim, este pós-sinodal requer, como na preparação, confiança na Providência Divina e dedicação para que todo este trabalho não caia no esquecimento, mas que os frutos permaneçam na Igreja e na sociedade.
Jornal "O São Paulo", edição 3072, de 07 a 13 de outubro de 2015.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Misericórdia e unidade: Papa Francisco convoca Ano da Misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

O Papa Francisco convocou um Ano Santo da Misericórdia para ser vivido nas comunidades da Igreja, por religiosos, padres e leigos, e pelas comunidades e pessoas que, por motivos diversos, estão fora da Igreja. O Ano Santo será oficialmente aberto no dia 8 de Dezembro de 2015, na solenidade da Imaculada Conceição, com a abertura simbólica da Porta da Misericórdia na Catedral de Roma, a Basílica de São João de Latrão, e terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016.
De acordo com o Papa, na Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Misericordiae Vultus, o ano de 2015 foi escolhido para ser o Ano da Misericórdia por se tratar, dentre outros, do ano onde se comemoram os 50 anos do enceramento do Concílio Vaticano II. Um concílio que abria as portas da Igreja para anunciar o Evangelho de maneira nova, uma nova etapa na evangelização. Um novo compromisso para os cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé.
O Papa Francisco coloca que o Ano da Misericórdia tem duas funções principais. A primeira é promover a unidade interna na Igreja, uma unidade necessária diante de tantos radicalismo e incompreensões que abalam internamente a Igreja no mundo contemporâneo. Atualmente a Igreja encontra-se profundamente dividida em polos ideológicos e antagônicos e, por isso, o Papa clama por unidade. A segunda é o cristão ir ao encontro das mais variadas periferias existenciais, que, muitas vezes, o mundo contemporâneo cria. Um das finalidades do encontro com as periferias existenciais é promover a conversão e a misericórdia com os diversos grupos sociais que vivem, de diversas formas, como prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea (as drogas, o terrorismo, a corrupção, o desamor, a abuso do poder, as ideologias, etc). Para o Papa Francisco uma das causas, dentre outras, da existência da pobreza, da corrupção e dos demais males que afligem o mundo contemporâneo é o egoísmo e o distanciamento do homem do amor de Deus. Por causa disso, o Papa coloca que é preciso levar a misericórdia de Deus para a periferia existencial e, com isso, procurar abrir o caminho da ação de Deus e da Doutrina Social da Igreja (DSI) no mundo atual. O mundo atual precisa da misericórdia de Deus e da ação da Doutrina Social da Igreja.
O Papa espera que nas comunidades cristãs (paróquias, conventos, etc), durante o Ano da Misericórdia, as pessoas que estejam com algum problema ou angústia possam encontrar um oásis de misericórdia. Por isso, o Papa deseja que sejam praticadas as obras de misericórdia corporal e espiritual. Por obras de misericórdia corporal espera-se, por exemplo, dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. Por obras de misericórdia espiritual espera-se, por exemplo, aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Por fim, afirma-se que a iniciativa do Papa Francisco, ao convocar o ano da Misericórdia, é necessária para o mundo atual, marcado pela corrupção, pela violência, pela indiferença e pela desumanização do ser humano.
Jornal "O São Paulo", edição 3071, de 30 de setembro a 6 de outubro de 2015.

Bem mais complexa…


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Recentemente a comunidade católica foi provocada a se manifestar sobre as propostas de inclusão do tema do gênero nos Planos Federal, Estaduais e Municipais de Educação. Há que esclarecer que, quando se fala em gênero, amiúde não se está referindo apenas à definição sociológica do ser homem e ser mulher, mas se inclui aí a teoria genderqueer, envolvendo todas as formas de orientação sexual.
Essa ideologia (para uns) ou teoria (para outros) seria a expressão da “terceira onda” feminista, de matriz marxista, representando uma ameaça à instituição familiar. Creio, no entanto, que a questão seja bem mais complexa e que as “ameaças” – ou melhor, desafios – à família estejam bem mais perto do que gostaríamos de admitir. Pensadoras como Simone de Beauvoir e Shulamith Firestone, ao criticarem o modelo de família burguesa e patriarcal que tinham diante de si, jogaram fora a criança com a água suja do banho. Contudo, elas apontam para questões que ainda esperam respostas ou pistas de respostas, inclusive de nós, cristãos.
Considera-se que uma das conquistas da Modernidade foi a “descoberta” do indivíduo, com a compreensão da sua dignidade, de seus direitos, de sua igualdade… Faltou-lhe, contudo, “descobrir” a pessoa, ou seja, o indivíduo que se relaciona – com um Ser transcendente e com os outros.
Convivemos hoje com a exacerbação do individualismo pela “cultura do consumo”, que leva não só ao “usa e joga fora” dos objetos, mas também das relações humanas, na busca do “prazer a todo custo”. Essa sociedade produz seres narcisistas, que não conseguem encontrar nos outros senão a projeção de si mesmos. Os grandes sentidos da vida são transformados em projetos de carreira, sucesso, autoestima, num vertiginoso egotrip. Até mesmo as relações conjugais, até mesmo os filhos, estão subalternos a essa hierarquia de valores.
Aqui reside a ameaça à família e à própria identidade feminina, bem como à masculina.
O ser humano “não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo” (Gaudium et spes, 24), ou seja, na relação gratuita com o outro. “Num certo sentido, a feminilidade se encontra a si mesma diante da masculinidade, ao passo que a masculinidade se confirma por meio da feminilidade”, pensava João Paulo II. “Para conhecer-se bem e crescer harmonicamente, o ser humano precisa da reciprocidade entre homem e mulher. Quando isso não acontece, veem-se as consequências. Somos feitos para nos escutarmos e nos ajudarmos. Podemos dizer que sem o enriquecimento recíproco nesta relação – no pensamento e na ação, nos afetos e no trabalho, também na fé – os dois não podem nem ao menos entender profundamente o que significa ser homem e mulher. A cultura moderna e contemporânea abriu novos espaços, novas liberdades e novas profundidades para o enriquecimento da compreensão desta diferença”, explica o papa Francisco.
É legítimo que as ciências humanas se debrucem na compreensão das igualdades e diferenças entre homem e mulher, compreendendo o que vem da evolução biológica humana, o que vem de registros ancestrais, o que consta nos registros inconscientes, o que são construtos culturais, bem como esses fatores interagem dinamicamente entre si.

Mas é urgente que cristãs e cristãos, abraçando com coragem os mal-estares dessas novas situações, iluminados pelo Evangelho e pelo Magistério da Igreja, busquem caminhos que vão ao encontro do que há de autêntico nas demandas de hoje e deem testemunho convincente disso.
Jornal "O São Paulo", edição 3070, de 23 a 29 de setembro de 2015.

Tráfico de pessoas: coisificação da pessoa humana

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Carolina Alves de Souza Lima, advogada, mestre, doutora e livre-docente em Direito pela PUC/SP, é professora da graduação e da pós-graduação em Direitos Humanos.

O tráfico de pessoas é um crime que se tem intensificado na atualidade, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Consiste em conduta cujo objetivo maior é a exploração da pessoa humana, por meio do trabalho escravo, da exploração sexual, da comercialização de crianças, da venda de órgãos do corpo humano e de condutas similares e que visam a tratar o ser humano como mero objeto.  A prática desse crime revela a instrumentalização do ser humano, postura avessa à compreensão kantiana a respeito da dignidade da pessoa humana, definida como a condição que faz do ser humano um fim em si mesmo. Por isso, representa grave violação aos direitos humanos.
Trata-se de atuação criminosa organizada de forma sofisticada e extremamente lucrativa. As vítimas são geralmente pessoas vulneráveis no campo econômico, social ou psíquico. Em sua maioria, mulheres, crianças e adolescentes.
Dentre os documentos internacionais, o Protocolo de Palermo, adotado pelo Brasil em 2004, define as condutas que configuram o tráfico humano e estabelece quais providências devem ser tomadas pelos Estados na prevenção e repressão ao referido crime. No âmbito nacional, o Código Penal preceitua, em seus artigos 231 e 231-A, respectivamente, o crime de tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual e o tráfico interno de pessoas para fim de exploração sexual. Não obstante a referida previsão legal, a prática do referido crime vem-se intensificando globalmente. Várias razões podem ser destacadas, dentre elas a pouca eficiência na apuração, processo e responsabilização pela prática do tráfico de pessoas, assim como a falta de implementação das medidas de prevenção a esse delito, que devem ser coordenadas em parceria pelas autoridades nacionais e internacionais.
Diante desse cenário, indaga-se se referido crime deveria ser considerado crime contra a humanidade e julgado pelo Tribunal Penal Internacional. O artigo 7º do Estatuto de Roma, tratado que criou o referido tribunal, define os crimes contra a humanidade. Não especificamente o crime de tráfico de pessoas, mas faz referência a crimes diretamente ligados a ele, como a escravidão, a prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional, a escravatura sexual, a prostituição forçada, e ainda atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física e mental do indivíduo. No meu entender, a previsão do crime de tráfico de pessoas como crime contra a humanidade pode ser uma importante medida para fortalecer o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. No entanto, são necessárias inúmeras medidas de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas, que devem ser coordenadas tanto pelas autoridades nacionais quanto internacionais, além da denúncia das vítimas, a sua proteção e o esclarecimento da população a respeito da incidência desse delito. Sabemos que o enfrentamento do tráfico de pessoas é tarefa complexa, não há soluções imediatas e o Direito Penal não tem sido o instrumento mais eficaz na proteção dos direitos humanos. Ele continua sendo a ultima ratio.  
Jornal "O São Paulo", edição 3069, de 16 a 22 de setembro de 2015.