segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Natal do Deus conosco

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Padre Reginaldo Manzotti é coordenador da Associação Evangelizar é Preciso e pároco reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba (PR). Apresenta diariamente programas de rádio e TV.

Mais uma vez nos preparamos para comemorar o Natal. A cada ano a sensação que se tem, através das propagandas vinculadas na mídia, é que está se perdendo mais e mais o verdadeiro sentido do Natal.
Papai Noel tornou-se o símbolo do Natal, e a festa do Deus Menino, que nasceu numa simples manjedoura, pobre entre os pobres, na gruta de Belém, tornou-se um pretexto para um consumismo desenfreado.
Até mesmo entre nós católicos, muitos sabem que celebram o nascimento de Jesus, mas não se atém à grandiosidade que envolve este fato. A festa do Natal é de fundamental importância para o cristianismo, pois se celebra a encarnação de Deus feito homem (Jo 1, 14).  Jesus, o Emanuel, Deus Conosco que entra na história sendo frágil criança, é Deus que se esvaziando de si mesmo, vem a nós, assumindo nossa condição humana em tudo, menos no pecado. Vem para trazer a luz, a paz, a salvação. Juntamente com a Páscoa, o Natal é uma das maiores festas da religião católica.
Nesse tempo é comum passarmos nas ruas e vermos os moradores pintando, arrumando, decorando suas casas para o Natal, isso é válido, mas não podemos nos esquecer que é em nosso coração que Jesus quer nascer e renascer a cada ano.  Por isso a Igreja, Mãe e Mestra oferece um tempo propício para nos prepararmos para viver o Natal em toda sua plenitude. Este tempo chama-se Advento – chegada.
Esse tempo que vivemos e nos torna mais humanos é uma graça especial de Deus. Ele a cada ano nos concede este momento de humanização. Enquanto a ressurreição é o momento da eternização do humano, o Natal é a humanização do eterno. E ao celebramos o eterno no humano nos tornamos melhores. Parece óbvio, mas o mundo se torna mais solidário porque os homens recebem neste tempo uma graça de Deus.
A noite santa e o dia de Natal têm esse encanto de nos fazer olhar para aquilo que há de mais digno em cada ser humano: o divino corporizado, transformado, materializado. Somos chamados a olhar o lado bom e a melhor parte que cada um de nós tem. Por isso o Natal é tão especial e maravilhoso.
O encanto vem do Natal porque nele o lado de Deus presente em nós fica mais latente, o pedaço de Deus derramado em cada ser humano pulsa mais forte e no mesmo ritmo que nossos corações. Mesmo os cristalizados, endurecidos, mesmo aqueles que ficaram amargos, aqueles que ficaram profundamente marcados pela mundaniedade, explodem diante do eterno, diante da manifestação frente a Deus, que do alto dos céus abre as nuvens, passa e se faz um de nós. A noite de Natal permite bombear em todas as nossas veias, a eternidade que existe dentro de nós.
Há coisas ruins, há mágoas? Supere-as. Um anjo apareceu aos pastores e anunciando o nascimento do Menino Jesus os encheu de luz, mas o que disse em primeiro lugar não foi glória ou paz, foi: “Não tenhais medo” (Lc 2, 10a), não temais, não tenhais pavor, não desiludais.
O mal que pode estar em nós é infinitamente menor do que o bem, porque Deus o eterno, materializou-se e nós somos um pedaço de Deus.
Natal é Natal porque Jesus nos dá esse presente. O Verbo se fez carne, o Verbo se fez um de nós. A palavra se fez carne e se fez luz. Vale a pena insistir, vale a pena deixar a luz nos guiar. Essa luz, esse Cristo que veio nos trazer um jeito diferente de olhar o mundo, tem que ser um referencial não só no Natal, mas sempre.
Jornal "O São Paulo", edição 3082, 17 de dezembro de 2015 a 5 de janeiro de 2016.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A esperança do Natal em meio à crise

Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3082, de 17 de dezembro de 2015 a 5 de janeiro de 2016.


Num momento de crise econômica, política e social, como este atual, nossa mentalidade consumista e cética tende a pensar este Natal como aquele “de poucos presentes”. Ou reduzi-lo a um momento de esquecimento, de alegria e celebração, onde não lembramos dos problemas que voltarão quando a festa acabar.
Mas o Natal, inclusive o da crise, é uma festa de esperança, onde celebramos o fato de que Cristo nos “primereia”, no neologismo do Papa Francisco.  Ele vem primeiro, vem em nosso auxílio sem que tivéssemos feito algo para merecê-lo.
J.R.R. Tolkien escreveu que as coisas de Deus são sempre surpreendentes e imprevistas, ainda que tenhamos passado toda a nossa vida ansiando por elas. Cristo nos “primereia”, toma a iniciativa, vem ao nosso encontro, e nós, mesmo que sempre tenhamos desejado isto, nos surpreendemos cativados.
A celebração do Natal não é só do menino-Deus que nasceu na manjedoura há séculos. É a celebração daquele primeiro encontro feito por cada cristão em sua caminhada na fé, que cada um de nós recorda com gratidão e ternura.
Todos nós, num dia, numa ocasião específica, encontramos Cristo em nossa vida. Geralmente foram ocasiões que pareciam banais. Outros pensariam em autossugestão, “coincidências” ou frutos do nosso trabalho e inteligência. Mas nós sabemos que não foi nada disso, que sugestões e coincidências não explicam aquela ocasião, que nossas capacidades não poderiam criar aqueles resultados.
Foi Ele que quis se manifestar em nossa vida, que “primereiou”, tomou a iniciativa e veio até nós. A cada Natal somos convidados a lembrar não só o nascimento de Belém, mas também este que aconteceu e continua acontecendo em nossa vida.
A esperança cristã não vem de nossas forças. Pelo contrário, é ela que nos dá forças. Uma esperança que nasce porque Deus vem até nós, realmente nos ajuda quando precisamos.
A celebração natalina será um gesto nostálgico ou escapista, uma simpática ilusão, se não nos lançarmos na realidade a partir desta esperança. Por isso, a crise não é um obstáculo para a festa, mas uma oportunidade de nos reencontrarmos com a razão de nossa esperança.
É um caminho de solidariedade, partilha e dedicação ao outro.  O encontro com Cristo não é um tesouro que pode ser acumulado. Guardado, se corrompe e perde seu valor. Distribuído, empenhado na construção do bem, se multiplica e mostra todo o seu valor.

O Natal da crise não é aquele de poucos presentes. É o Natal onde o verdadeiro Presente pode se tornar ainda mais presente. Basta nos entregarmos com confiança à esperança que nasce do encontro com Cristo, vivendo-a na solidariedade com os que estão nas “periferias da existência”.

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A cultura da misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco, nos convida à conversão a uma mentalidade que é exatamente oposta à mentalidade individualista e calculista de nossos tempos. Na tradição cristã, o trabalho cultural para construir esta nova mentalidade começa pelo arrependimento e a prática das obras de misericórdia, que correspondem ao ir até as periferias da existência, como diz o Papa.
Talvez o termo arrependimento pareça muito duro para nossos interlocutores. Mas todos nós – e neste tempo talvez até mais do que antes – sentimos a necessidade de nos conhecermos, entender quem somos, olhar de frente e sem culpa nossas frustrações e nossos fracassos.
A primeira e mais evidente “libertação do pecado” é poder reconhecer nossos limites e nossos erros sabendo que eles não serão obstáculo para nos sentirmos amados. Na sociedade de hoje, para sermos aceitos e nos sentirmos estimados, temos a obrigação de aparentar uma perfeição e uma adequação que nos oprime. O chefe tem que aparentar poder e segurança, o subalterno tem que ser muito eficiente, os jovens têm que parecer legais e liberados. Até os enamorados, os pais e os filhos se sentem pressionados pelas expectativas uns dos outros.
Só o amor misericordioso, gratuito e ilimitado de Deus pode nos dar a liberdade de sermos nós mesmos, de nos descobrirmos acolhidos sendo o que somos. Da gratidão por esse amor nasce o verdadeiro arrependimento. Trata-se de um “conhece a ti mesmo” que não é socrático, mas cristão, pois nasce do amor.
Uma cultura da misericórdia implica nesta sabedoria que reconhece o próprio pecado porque conhece o amor de Deus. A sabedoria de quem é capaz de discernir seus erros e os dos outros, mas reconhece que é o amor e não o erro que dará a última palavra sobre nosso destino – e prefere a misericórdia à severidade, como lembrou o Papa Francisco na Misericordiae Vultus.
O exemplo de Francisco ilustra o quanto nós e o mundo ansiamos por isso. A resposta a este anseio implica num discernimento, que não pode ser desculpa para a condenação do outro, mas traz uma luz verdadeira à questão de gênero, ao tráfico de drogas, aos casais em crise, ao combate à pobreza e a tantas outras situações de nossa sociedade.
Esta sabedoria não será assimilada por discursos. Nosso gesto da acolhida, que é o verdadeiro início de qualquer obra de misericórdia, é fundamental não só para que o mundo reconheça a gratuidade do amor, mas também para que reconheçamos em nós mesmos a dinâmica de amor acontecendo.
Nas décadas de 1960 e 1970, a Igreja passou por uma “revolução cultural” em relação ás obras de misericórdia. Foi a época da crítica ao assistencialismo, da percepção que a missão “não era dar o peixe, mas ensinar a pescar”, que a dimensão política da caridade implica numa transformação das estruturas.
No contexto atual, em que se reconhece claramente as obrigações sociais do Estado, mas no qual são evidentes seus limites para realizá-las, a reflexão cultural sobre a misericórdia implica em repensar com que luz o amor cristão e a experiência das obras de misericórdia pode iluminar as políticas públicas, a ação do Terceiro Setor e a construção de uma sociedade mais justa.
A misericórdia implica numa mudança de mentalidade que atinge todas as dimensões da vida pessoal e social. Sem esta mudança, a mensagem cristã corre o risco de se perder no pietismo e no intimismo, deixando de ser força de construção de uma nova vida para todos nós.
Jornal "O São Paulo", edição 3081, 10 a 16 de dezembro de 2015.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Esquecer o amor é desfazer-se do homem

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ricardo Gaiotti Silva é advogado, juiz eclesiástico no Tribunal Interdiocesano de Aparecida, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

A sociedade internacional novamente se depara com inúmeros problemas que nos levam, inclusive, a desacreditar na possibilidade da construção de um mundo verdadeiramente humano, no qual as pessoas possam respeitar e lutar pelos direitos dos homens. Surge então o questionamento: o mundo tem solução? Qual é o remédio para o egoísmo e individualismo presente? A paz é possível?
Foram justamente essas inquietações que levaram o Papa Bento XVI a apresentar, no Natal de 2005, sua primeira encíclica Deus Caritas Est – Deus é amor. O pontífice, naquele momento, apontava que a palavra “amor” estava cada vez mais sendo utilizada de forma descontextualizada. Além disso, o próprio nome de Deus – “amor” estava sendo associado a vingança, ódio e violência. Portanto urgia no mundo, para o Papa, uma mensagem muito concreta sobre o significado e alcance do amor.
De fato, o Papa Bento XVI traz consigo e nos comunica a esperança própria do amor, ou seja, uma esperança que parte do acolhimento do dom gratuito de Deus para como os homens. Uma vez que “Deus tanto amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16), todos podem responder a esse dom, colaborando uns com os outros na construção de um mundo melhor.
A resposta a este amor torna-se uma proposta concreta para a sociedade, gera concretamente a solidificação de valores almejados por todos como a fraternidade, a tolerância, a paz, a justiça, a honestidade, etc. Assim, fundado na esperança própria do amor, o Papa Bento XVI nos apresentou um caminho de colaboração humana, tendo como ponto de partida a caridade. Por meio dela, toda a sociedade possui um caminho seguro na busca da paz, da justiça, da verdade. 
O Papa Bento XVI nos ensinou ainda que o amor – caritas – é sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Pois, não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem.
De fato o amor não é uma utopia, mas sim uma resposta a um dom gratuito que recebemos. Isso nos impele a leva-lo para a vida pública, é em meio à comunidade que somos destinados a viver o amor. Falar de uma atitude positiva das sociedades fundadas no amor se torna uma realidade concreta, um convite sábio e exequível na busca de um mundo melhor.
Enfim, se queremos uma sociedade mais justa, devemos primeiramente acreditar no dom do amor. Acolhendo esse mistério somos levados a corresponder ao amor, com um autêntico espírito de fraternidade, pois ela é o remédio que vence o egoísmo. Há uma proposta concreta à qual a sociedade pode se dirigir: a experiência do amor! A esperança é o amor!
Como bem nos ensinou o pontífice, só haverá paz na sociedade humana se o amor estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. A paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda na ordem fundada na verdade, se não é construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada na liberdade, ou seja, enraizada no amor.
Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem!
Jornal "O São Paulo", edição 3080, 2 a 8 de dezembro de 2015.