segunda-feira, 28 de março de 2016

O que o Brasil precisa

Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3094, de 23 a 29 de março de 2016.

Segundo a tradição de algumas religiões antigas, quando alguém estava em perigo grave da própria vida, podia recorrer à proteção “divina”, escondendo-se em um templo. Assim a pessoa se colocava sob a proteção da divindade e não podia ser tirada do templo. Nesse caso, nem a justiça e nem a vingança podiam ser executadas enquanto durasse o asilo divino.
Esse recurso era uma alternativa para quem não estivesse em condições de provar a sua inocência, ou de outra forma, para quem estivesse próximo de sofrer um castigo que excedesse a violência do próprio ato. Nos dois casos, o que estava em jogo era o princípio da justiça e não a conivência da divindade.
Os avanços sociais e o desenvolvimento dos mecanismos punitivos e legais, criados pela sociedade, provocaram uma mudança no jeito de fazer justiça. Foram criadas formas processuais e tribunais especializados em diferentes níveis - locais, regionais, nacionais e até mesmo internacionais. O uso de novas tecnologias e o conhecimento científico avançado deram novo impulso aos mecanismos legais. Hoje é possível obter provas residuais de um crime com uma precisão cada vez maior, por meio de impressões digitais, de exames de DNA, de escutas telefônicas, restos de documentos impressos ou digitais. Na prática, quase tudo pode ser submetido a uma perícia, para se tornar prova num processo.
Numa situação em que o Estado é laico, como é o caso do nosso País, é perfeitamente claro que os processos pelos quais se chega a fazer justiça devem ser imparciais e precisos. Refugiar-se no “Templo” não é mais uma opção. O interesse da justiça deve prevalecer em todos os âmbitos. Mas entre as engrenagens desses processos legais, foi criada uma saída, ou melhor, uma entrada para um tipo de “Templo moderno”, onde também se garante proteção. Esse recurso conhecido é chamado de “foro privilegiado”.
Segundo essa prática, quem está exercendo um determinado cargo recebe o benefício de não ser julgado como todos os demais. Nesse caso, se resguarda o ofício, mas se instala uma exceção no princípio da igualdade, garantido pela nossa Constituição federal, que afirma que todos são iguais e sem distinção de qualquer natureza, perante a lei.
Esses “Templos modernos” são muitos e são servidos por “sacerdotes” e “sacerdotisas”, que ganham o benefício da proteção para si ou o invocam para os seus afiliados. Para que toda a sociedade tomasse consciência da extensão e da conveniência desse benefício, foi necessário acontecer uma grande agitação popular.
Mas por tudo isso, parece que chegamos ao tempo de uma verdadeira mudança, de uma metanoia no pensamento e nas atitudes. Não precisamos de novos heróis, que venham para substituir os antigos, perpetuando os esquemas de sempre. A crise política atual é fruto de uma situação semelhante e é também uma ocasião que se abre em duas possibilidades.
De um lado, podemos nos debater acirradamente, defendendo dois movimentos opostos e carregando bandeiras de corres diferentes. Cada lado enxergando a justiça, o direito e o golpe sob o seu ponto de vista e tentando todos os meios para influenciar e formar a opinião das massas. Nessa luta, os vencedores serão os mesmos, e também os vencidos. Os dois lados dizem que estão lutando para manter os direitos sociais, e até fazem propostas de ampliação, mas em nenhum momento se viu a proposta uma reforma que leve à perda dos privilégios. As lideranças continuam resguardadas. Na prática, o resultado final será a manutenção do sistema, com a troca de lugares entre governo e oposição.
Por outro lado, temos a possibilidade de iniciar um processo de mudanças, na ética pública e do comportamento social. As instituições e os poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - existem para promover e garantir o desenvolvimento e o bem-estar do povo. As pessoas que trabalham nessas repartições são servidores públicos e devem prestar contas de seus atos a toda sociedade, sem privilégios ou obstáculos para a execução da justiça. Quanto mais transparentes as relações de governo e quanto mais éticos os servidores, mais fortes serão as instituições, e por isso é tão urgente uma reforma ética na vida pública.
Mas essa reforma não pode avançar se antes, também, não avançar uma reforma na conduta social e pessoal de toda a população. Não podemos continuar buscando obter vantagens e lucros pessoais nas pequenas coisas à nossa volta. Quem fura uma fila de banco ou no trânsito, quem passa e quem recebe notas fiscais frias, quem compra ou revende mercadorias de origem duvidosa ou falsificada, e quem sempre acha um jeito de tirar vantagens de uma situação qualquer, é tão corrupto como aqueles que superfaturaram contratos ou que cobraram propina.
O que vemos hoje pelos jornas e noticiários, com tristeza, é uma nação dividida pelas manifestações. Em nome da justiça e da igualdade, cada lado repete um gesto patriótico, cantando o hino nacional, cada qual defendendo sua ideologia ou seu partido. Não será apenas um desfile de atores e atrizes principais, rodeados por coadjuvantes? O único gesto, verdadeiramente patriótico, que poderá mudar o destino do país é dizer NÃO a todo tipo de corrupção.

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O Brasil entre o confronto e o diálogo.
Francisco Borba Ribeiro Neto

segunda-feira, 21 de março de 2016

Saneamento básico para todos. O sonho de ter um banheiro.

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Gilmar Altamirano é publicitário, especialista em meio ambiente e sociedade e diretor presidente da ONG Uniagua (Universidade da Água).

Desde 1963, as Campanhas da Fraternidade têm sido importante instrumento de evangelização e cidadania. A Campanha da Fraternidade de 1979 foi a primeira a abordar a questão ambiental e a água, principal agente da vida e do saneamento básico, com o tema: “Preserve o que é de todos”. Posteriormente, em 2004, a água é abordada mais diretamente numa das campanhas que mais mobilizaram as comunidades com o tema “Água. Fonte de Vida”. Este ano a campanha toca num dos principais problemas brasileiros: a falta de saneamento básico, com o tema "Casa comum nossa responsabilidade".
Com um tempo curto de articulação e veiculação da campanha, 40 dias da quaresma, o grande desafio é conseguir o pleno entendimento da mensagem, gerar consciência e, principalmente, provocar a ação. Infelizmente, boa parte das pessoas se move na vida com o “piloto automático” e apenas uma pequena parte se engaja realmente nas causas sociais e está propensa a mudar o comportamento e agir efetivamente. A maioria não quer ou não sabe o que fazer para mudar a situação. E como cita a própria CNBB “um problema específico que exige a participação de todos na sua solução", a mobilização não pode ser pontual, mas coletiva.
Uma mobilização coletiva pressupõe: identificação das barreiras para mudança, ouvindo a comunidade-alvo e qual a percepção desta comunidade sobre o problema e as possibilidades de mudar a situação.
Se fizermos uma pesquisa nos surpreenderemos com quantas pessoas sabem de alguma coisa sobre o problema da falta de saneamento ambiental, mas não sabem o que fazer a respeito. A questão estruturante: Investimento em obras de saneamento não acompanharam o crescimento da população. A questão não estruturante: gestores públicos não ensinam a importância e como usar a obra de forma sustentável.
Mesmo onde há rede de esgoto, muitos não ligam suas moradias às essas redes. Às vezes, por não darem o devido valor por desconhecerem, em parte, que esgotos a céu aberto são as principais causas de epidemias.
Como diz o rap “Castelo de Madeira” (composto pelo grupo “A família”, em 2004):

Coisa de louco, abrir a janela e ver no esgoto
Cachorro morto, sentir o mau cheiro e o desconforto
E junto com a lama, o drama, a sujeira
"Brasilite" no calor é um inferno, mó canseira [...]

Sonhei com tudo isso a vida inteira
Realizei meu sonho, meu castelo de madeira.
E é treta todo dia, todo dia, o dia inteiro
Só falta construir um banheiro.


O “Castelo de Madeira” é o barraco na comunidade e a música trata bem a falta de saneamento e dignidade humana que prevalece principalmente na periferia das cidades brasileiras.
Entretanto, uma coisa é termos consciência que “fumar pode provocar câncer”, outra coisa é “agirmos para parar de fumar”. É necessário identificar as barreiras para a ação, a partir daí desenvolver a campanha para ajudar a população a enfrentar o problema com orientações do que pode ser feito. Não cabem soluções impostas por decisões de gabinete. A Igreja já ensina: é fundamental ouvir as pessoas.
Antigamente, nas pequenas comunidades, por meio dos diálogos nos confessionários, os párocos podiam ter uma ideia mais clara de quais eram os conflitos mais frequentes enfrentados pelos fiéis e assim podiam dirigir melhor a mensagem do sermão.
Por isso, não basta a consciência, temos que encontrar o que dizer e o que fazer para mudar.
Jornal "O São Paulo", edição 3093, 17 a 22 de março de 2016.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Três anos de Francisco, a 50 anos do Concílio

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do 
Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Domingo, 13 de março, é o terceiro aniversário da eleição do Papa Francisco. Nesta data, não é necessário comentar sua força renovadora, o peso político de seu compromisso com os pobres e o meio ambiente, ou sua preferência por uma Igreja que, nas palavras de São João XXIII, “usa mais o remédio da misericórdia que o da severidade” (cf. Misericordiae Vultus). Muito se tem escrito também sobre a relação entre Francisco e o espírito do Concílio Vaticano II, o grande evento renovador da Igreja contemporânea.
Qual é o significado dos quase 50 anos que separam o final do Concílio (1965) da eleição de Francisco (2013)? Hoje, para nós, é até difícil imaginar o clima político e cultural do pós-Concílio e seu impacto sobre a comunidade cristã da época. Ditaduras de direita na América Latina, ditaduras comunistas na Europa Oriental, o furor revolucionário terceiro-mundista e a utopia hippie – tudo prestes a se desconstruir no pragmatismo político-econômico do mundo globalizado, a se dissolver na fluidez ideológica da pós-modernidade.
O Concílio aconteceu sob o signo da secularização. Parecia evidente que as religiões eram coisa do passado, resquícios de uma humanidade ignorante e supersticiosa. Na própria comunidade católica muitos pensavam que o “aggiornamento”, a atualização, passava necessariamente pela adoção dos valores da Modernidade e das regras do universo político laico (que bania as religiões para um espaço privado e intimista); pela eficiência assistencialista ou política da Igreja (transformando-a na ONG sem Cristo criticada por Francisco no início de seu pontificado).
Nestes 50 anos, nem sempre o esforço da Igreja para afirmar o vínculo inevitável entre o ser humano e seu Criador foi adequadamente reconhecido. Leituras ideológicas, a esquerda e a direita, desfiguraram tanto a mensagem dos papas quanto o testemunho de muitos santos comprometidos com os mais pobres e com a vida. A consolidação da Igreja no pós-Concílio exigiu um grande esforço para se reconhecer sua origem mística em Deus, se aceitar uma lógica que não era a da Modernidade.
Mas, ao longo do tempo, o otimismo quanto aos potenciais da ciência, do humanismo agnóstico, da revolução utópica ou do mercado deram lugar a profundas decepções, ao pragmatismo sem ética e à perda dos ideais daqueles luminosos anos ’60.
Agora, assistimos muitos casos de renovação das religiões e da busca mística das pessoas. Alguns poderão criticar, por exemplo, o exotismo de certa espiritualidade ao estilo new age ou a intransigência de grupos tidos como fundamentalistas. Mas, 50 anos depois do Concílio, a pessoa sincera pode reconhecer ainda com mais facilidade a exigência de Deus inscrita no coração humano.
Aos cristãos parece muitas vezes que o mundo é cada vez mais hostil à fé. Mas isso não é verdade. O poder, cada vez mais despersonalizado e despótico no mundo atual, realmente tenta afastar-nos cada vez mais de Deus. Mas, quanto mais o poder tenta afastar Deus do coração da pessoa, mais esta sente a Sua falta.
Contudo, para que esta falta possa ser suprida, é preciso explicitar a força da misericórdia, de um coração que se percebe pecador, mas amado por Deus mesmo assim. Esta é a raiz oculta do encanto que o Papa Francisco exerce sobre o mundo.
Quem lê seus testemunhos pessoais em O nome de Deus é misericórdia (Planeta, 2016), compreende como este diálogo entre o coração contrito do pecador e o coração misericordioso de Deus pode criar, com Francisco, a demonstração eloquente de que a Igreja porta a resposta verdadeira também para o homem de hoje.
Jornal "O São Paulo", edição 3092, 10 a 15 de março de 2016.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Responsabilidade coletiva no cuidado da água

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Marlene dos Santos Vilhena é mestre e doutoranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP.

A crise hídrica criou uma oportunidade para a sociedade pensar e repensar que a água é indispensável para a vida humana e para os ecossistemas. A escassez da água potável e limpa chegou, e a necessidade de mudanças de hábitos se torna uma realidade quanto ao uso socialmente sustentável da água para o beneficio da coletividade presente e futura. A Campanha da Fraternidade deste ano reforça em todos nós a necessidade de nos comprometermos com a conservação e com o uso socialmente justo deste recurso.
A ONU alerta que o planeta enfrentará, até 2030, um déficit de água de até 40% - a menos que sua gestão seja melhorada dramaticamente. A agricultura depende da água para a produção de alimentos e as plantações estão usando mais água à medida em que a população mundial aumenta. Infelizmente, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade.
Em São Paulo, a redução dos níveis de água nos reservatórios foi motivo de atenção e preocupação, mostrando que o uso racional dos recursos hídricos é indispensável para assegurar a vida. Hoje, se faz necessária uma mudança de postura para o enfrentamento da crise hídrica: mesmo que as chuvas recentes fiquem acima do esperado, não se deve esquecer que a estação chuvosa provavelmente termine entre março e abril. Cabe a todos a responsabilidade de cuidar da água, consumindo responsavelmente esse bem que é fundamental para a existência humana.
Nesse sentido o Papa Francisco, na Laudato si’ (LS 13), nos faz um apelo para que junto possamos cuidar da casa comum: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados setores da atividade humana, estão a trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos”.
Diante desse apelo do Papa Francisco, todos somos chamados a olhar para a “Casa comum, nossa responsabilidade”, pois o mundo requer uma postura singular no tratamento dos dons e bens ambientais. Ele afirma que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável” (LS 30)
A nossa Constituição Federal, em seu artigo 225, consagra o direto à sadia qualidade de vida, e para a efetividade desse direito, dentro dos padrões mínimos exigidos constitucionalmente para um completo “bem – estar”, são necessárias mudanças de valores e modos de estilo vida. De qualquer maneira, a escassez nos levar a cuidar da água de modo permanente, com consciência coletiva que esse bem (água) é limitado e toda a população deve evitar o desperdício de água potável.
Jornal "O São Paulo", edição 3091, 2 a 8 de março de 2016.