segunda-feira, 16 de maio de 2016

A alegria no amor é possível?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A recepção de Amoris laetitia, do Papa Francisco, vem se concentrando nas reflexões e nos debates sobre as chamadas “situações irregulares”, valorizando o trinômio “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”, que orienta as indicações de Francisco nestes casos. Contudo, podemos estar querendo construir a casa pelo telhado.
Na apresentação da Exortação, no Vaticano, o cardeal Lorenzo Baldisseri fez um apanhado numérico das citações contidas no documento. O trabalho, de certa forma, indicava onde estão as bases da reflexão de Francisco. Salta a vista, nesse levantamento, que as catequeses de São João Paulo II sobre o amor humano sejam citadas diretamente mais vezes que a Familiaris consortio (23 contra 21 vezes), assim como as muitas citações das catequeses sobre a família do Papa Francisco (50 vezes).
Papa Francisco, em suas catequeses sobre a família, antes de se preocupar com as “situações irregulares”, reflete justamente sobre as “situações regulares”. Qual é o papel de pais, mães, filhos, avós numa família estável e madura? Como um amor sadio se manifesta entre um homem e uma mulher, ajudando a cosntruir sua realização humana?
Não se trata de “idealizar” a família perfeita, mas de renovar duas mensagens aparentemente esquecidas ou até negadas hoje em dia: (1) uma família feliz, ainda que imperfeita, é possível; (2) o amor de Deus, apresentado a nós por Cristo e sua Igreja, é uma luz que pode orientar a construção dessa família.
Quem convive com universitários e outros jovens sabe que a “relativização moral” e a busca por um “prazer sem responsabilidade” nascem muito mais de uma descrença na possibilidade de um amor gratuito, fiel e permanente entre duas pessoas, do que de uma leviandade. O amor verdadeiro entre um homem e uma mulher é visto como romantismo ingênuo, hipocrisia machista, falsidade moralista. A “alegria do amor” só seria possível como emoção fugaz de um momento.
Por isso a Exortação não é “sobre a família”, mas sim sobre “o amor na família”. Não se trata de uma construção estilística, é preciso falar no amor para poder entender a família, porque nossas gerações desaprenderam a amar.
A reflexão de Francisco nos leva ainda às catequeses sobre o amor humano de São João Paulo II, publicadas no Brasil em “Homem e mulher o criou” (Bauru: EDUSC, 2005) e “Teologia do corpo” (Campinas: Ecclesiae, 2014). O primeiro título pode parecer, nos dias de hoje, uma contraposição à ideologia de gênero – mas não é esse o caso. São João Paulo II renovou a mensagem cristã lembrando que a sexualidade não era um atributo “secundário” da natureza humana, mas essencial, pois não existe ser humano desprovido de sexualidade O caráter unitivo do amor humano, assumido inclusive em seu aspecto sexual, é importante para se compreender a natureza do próprio amor de Deus por nós.  
São João Paulo II não fez uma reflexão dogmática e dedutiva, partindo das verdades da fé para normatizar a vida humana. Pelo contrário, sua reflexão procurou entender a natureza das experiências afetivas e eróticas das pessoas para, a partir delas, compreender a natureza do ensinamento cristão sobre os temas do amor, da sexualidade e da família. Essa linha de trabalho, pouca conhecida entre nós, tem gerado projetos educacionais muito bem-sucedidos em vários países.
Amoris laetitia nos dá a possibilidade de retomar as reflexões dos dois pontífices, buscando suas implicações na vida concreta de cada um. Lida em conjunto com as catequeses de São João Paulo, pode ajudar o cristianismo a realmente ajudar as pessoas a viver a alegria do amor, sem moralismos.
Jornal "O São Paulo", edição 3101, 13 a 17 de maio de 2016.

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