quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Campanha da Fraternidade 2017: Uma ética do maravilhamento e do cuidado

A Doutrina Social da Igreja na defesa dos biomas brasileiros

I



Veja no final do texto as leituras sugeridas para aprofundamento

A primeira Conferência da ONU sobre Meio Ambiente aconteceu em 1972. Mas antes, em 1971, na Octagesima Adveniens (OA), Paulo VI já advertia para os perigos da poluição e a necessidade de conservar o planeta para as gerações futuras (OA 21).
Na década de 1960, culpou-se a mentalidade judaico-cristã pelas agressões ao meio ambiente. Dizia-se que o mandamento bíblico para que o homem dominasse a terra (cf. Gn 1, 28) fora a justificação ideológica para o desrespeito ao meio ambiente. O Papa Francisco, na Laudato si’ (LS 67ss) mostrou que essa é uma leitura errada da Bíblia, pois ali também está escrito que o homem deve “guardar e cultivar a terra” (cf. Gn 2, 15). O homem deve “dominar” cuidando com amor. O pecado é a causa de nossa convivência predatória para com a natureza e com nossos irmãos (LS 2).
Sem usar palavras como ecologia e meio ambiente, o cristianismo – bem compreendido e autenticamente vivido – desde sempre teve uma postura de maravilhamento e respeito diante da criação. São Paulo reconhece a unidade profunda entre nós e tudo que existe ao dizer que a criação, junto conosco, “geme e sofre as dores do parto” esperando a redenção definitiva (Ro 8, 22).
Os Padres da Igreja, nos primeiros séculos do cristianismo, enfatizaram que toda a criação era boa, um sinal do amor de Deus, e deveria despertar o maravilhamento e a responsabilidade em nós. São João Crisóstomo (ca. 347-407), por exemplo, já dizia que os animais e plantas, mesmo os aparentemente inúteis para o homem, são intrinsicamente bons, pois são obra da bondade de Deus – e como tal devem ser tratados.
Ao longo dos séculos, muitos homens e mulheres de Deus se maravilharam e proclamaram a necessidade de respeitar a natureza. São Francisco (1182-1226) é o mais conhecido, mas temos muitos outros, como a índia norte-americana Santa Catarina Tekakwitha (1656-1680). No Brasil, a diocese de Crato, por exemplo, vem resgatando as práticas de conservação sugeridas pelo pe. Cícero (1844-1934).
Na Laudato si’, o maravilhamento diante da bondade de Deus gera uma ética do cuidado, onde responsabilidade e afeto se integram: “dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus [...] A natureza entende-se habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal” (LS 76).


Leituras sugeridas do Magistério:
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum, Roma, 24 de maio de 2015. Disponível aqui. A ética do cuidado perpassa toda a encíclica, a começar pelo título. Alguns trechos mais relevantes para o tema desse artigo:
oNo. 3-6. Pequeno histórico da questão ambiental nos documentos atuais da Igreja.
oNo. 62-100. Trata da questão ambiental nas Escrituras. Em particular, os Nº 67-68 falam da correta interpretação do Livro do Genesis e os Nº 76-83 falam do “mistério do universo”.
oNº 216-246. Trata da “espiritualidade ecológica”.
 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio de Doutrina Social da Igreja. Nº 451-487. Roma, 2004. Disponível aqui. Faz um apanhado do Magistério sobre o tema ambiental até o Pontificado de João Paulo II.

Outras leituras sugeridas:
CATHOLIC ECOLOGY. Reflecting on blessed Kateri Tekakwitha. Disponível aqui. O site conta um pouco da história dessa jovem, primeira índia a ser declarada santa, que os países de língua inglesa estão colocando como padroeira da ecologia, ao lado de São Francisco de Assis. Em inglês.
DIOCESE DE CRATO. Preceitos ecológicos do Pe. Cícero. Disponível aqui. Uma leitura particularmente interessante dentro dessa Campanha da Fraternidade que fala sobre a conservação da natureza, considerando o processo de recuperação da memória do Pe. Cícero que está sendo realizado pela Igreja no Brasil.
KINDIY, O. Patrology, Ecology, and Eschatology: Looking Forward to the Future of the Planet by Looking Back to the Fathers of the Church. Logos: A Journal of Eastern Christian Studies, 55 (3–4): p. 303–327, 2014. Disponível aqui. Apresenta as bases da reflexão teológica cristã sobre a natureza nos Padres da Igreja e ainda discute a chamada ecoteologia na perspectiva das hermenêuticas da ruptura e da continuidade. Apesar de ser em inglês, é leitura obrigatória para quem quer se aprofundar no tema.
RIBEIRO NETO, F.B. O diálogo entre catolicismo e ambientalismo a partir da Laudato si’. Revista eclesiástica brasileira, Petrópolis, 76 (301): p. 8-23, Jan /Mar 2016. Disponível aqui. Traz um apanhado das agressões ao meio ambiente em diferentes culturas e períodos históricos, além de sintetizar o debate entre a encíclica do Papa Francisco e os movimentos ambientais.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal “O São Paulo”, edição 3139, 22 de fevereiro a 2 de março de 2017

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A Igreja diante do desafio do envelhecimento

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

Atualmente, a sociedade presencia um dos fenômenos mais surpreendentes da história da humanidade. Trata-se do envelhecimento da população. O ser humano vive cada vez mais. A longevidade já não é mais uma exceção, mas uma experiência real. Apenas para ser ter uma dimensão da questão da longevidade, atualmente no Japão já é possível se viver entre 100 e 104 anos. A perspectiva é que uma criança nascida na Alemanha, a partir de 2016, viverá mais de 100 anos.
No entanto, em grande parte da história da humanidade poucos indivíduos chegaram à casa dos 60 ou 70 anos. Por exemplo, uma mulher no século III d. C., no período da decadência do Império Romano, com 18 anos já tinha 3 ou 4 filhos, com 30 anos, essa mesma mulher, provavelmente já tinha netos, era considerada velha e estava se preparando para morrer. Esse fato não é isolado. Ele se repetiu por quase toda a história universal.
A partir do século XVIII, por diversos fatores históricos, lentamente a média de vida vai aumentando. Passou-se de 30 anos para 40 ou 50 anos. Ao final do século XX, nos países desenvolvidos, esse aumento chega a uma média de 75 a 80 anos. Em muitas regiões vive-se, com facilidade, 90 ou 100 anos.  Além disso, a ciência está anunciando uma nova geração de remédios, o fim de várias doenças, a cura para doenças que, até o momento, são incuráveis, as empresas privadas e os Estados estão anunciando novos benefícios para a população. Com tudo isso, a expectativa é que a média de vida da população do planeta aumente para quase 110 anos.
É a primeira vez na história da humanidade que, de forma geral, a população poderá viver 100 anos ou até mais tempo. Estamos diante de uma grande revolução no campo da longevidade. No entanto, essa ótima notícia traz uma série de problemas para serem enfrentados, como, por exemplo, o problema da previdência e da aposentadoria, a questão do emprego para as novas gerações, reformas profundas na infraestrutura urbana, novo modelo de educação e leis que protejam a pessoa idosa.
Dentro desse debate emerge, com força, o papel da Igreja Católica. Em todo o mundo a Igreja tem sido uma grande protagonista na defesa, na promoção e na proteção da dignidade da pessoa idosa. Por meio da Pastoral da Terceira Idade e de outros organismos eclesiais, a Igreja tem promovido um processo de inclusão social e tem sido um espaço de acolhimento da pessoa idosa.
No entanto, é necessário ter consciência que os desafios e problemas causados pela longevidade não serão resolvidos apenas, de forma isolada, pelo Estado, por algum partido político ou outra organização social. Neste contexto, a Igreja é convocada a ser a mãe e gestora de políticas e ações que possam garantir a dignidade da pessoa idosa. A primeira grande ação da Igreja é promover – coisa que já acontece – a participação da pessoa idosa dentro da Igreja. Essa participação poderá acontecer, por exemplo, por meio das pastorais, de peregrinações a santuários e muito mais. A segunda grande ação é a Igreja ser a instituição que promova a educação para o envelhecimento, um novo modelo de educação que, desde a criança, prepare o cidadão para os desafios e os benefícios do envelhecimento. Não basta envelhecer. É necessário saber envelhecer, ter um projeto de vida que leve em consideração que, em tese, poderá se chegar a viver mais de 100 anos. Neste caso, o que se fazer com a vida? Nas próximas décadas a Igreja deverá ajudar aos cidadãos e a humanidade a encontrar uma saudável resposta para essa pergunta. 
Jornal "O São Paulo", edição 3138, 15 a 21 de fevereiro de 2017.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

As três dimensões da Liberdade Religiosa

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ricardo Gaiotti Silva é advogado, colaborador no Tribunal Eclesiástico de Aparecida, mestre em do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

A liberdade religiosa está relacionada com a capacidade do homem de autodeterminar-se na investigação e adoção da verdade religiosa que bem entenda e de ajustar sua conduta individual e social conforme os preceitos morais, que descobre conforme sua consciência.
O Papa Bento XVI nos ensinou que: “Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; (...) a liberdade religiosa deve ser entendida não só como imunidade da coação, mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as próprias opções segundo a verdade” (Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2011).
Assim, liberdade exige que os homens sejam imunes de coação, de modo que, em matéria religiosa, ninguém se obrigue a atuar contra sua consciência, nem seja impedido de atuar conforme ela quer seja pública ou privadamente, sozinho ou associado com outros dentro dos devidos limites.
Com isso, pode-se afirmar que a liberdade religiosa possui basicamente três dimensões: a liberdade de consciência, a de culto e a de apostolado. A liberdade de consciência considera antes de tudo, a pessoa humana sujeito individual, que é a capacidade do indivíduo de investigar livremente a verdade religiosa e de aderir-se a ela, sem ser coagido.
A liberdade de culto, para ele, decorre da necessidade humana de manifestar externamente seu pensamento e sentimento religioso, buscando não somente uma satisfação emocional, mas também uma inclusão social, e por essa razão, a liberdade de culto não é apenas um acidente, mas, sim, necessária para a liberdade religiosa, ou seja, a liberdade de culto é a liberdade religiosa coletiva.
Por fim, a liberdade de apostolado tem como finalidade, de acrescentar o fervor religioso entre os fiéis da mesma comunidade, por meio de pregações fora e dentro do culto e de outras práticas pastorais, como, ensinamento do catecismo, escritos em revistas e livros, cinema, teatro, rádio, televisão, internet. Porém, distinguem-se duas formas de apostolado: o primeiro, chamado interno, é o destinado às pessoas da mesma profissão de fé; o segundo, externo, possui como finalidade alcançar a todos, crentes ou não.
O exercício da liberdade religiosa garante não somente a possibilidade de professar uma fé, mas também a de comunicá-la; não por acaso, a liberdade de opinião é considerada por alguns juristas[1] como sendo a liberdade primária, o ponto de partida das outras liberdades, manifestando tanto em seu aspecto íntimo revelado na liberdade de consciência e de crença, bem como no seu aspecto externo, como pelo exercício das liberdades de comunicação, isto é, de transmissão e recepção do dado religioso.
Jornal "O São Paulo", edição 3137, 8 a 14 de fevereiro de 2017.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Estado subsidiário e não substituto: uma oportunidade para a Igreja

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Estudo recente mostra que as áreas da administração pública onde ocorrem os maiores desvios de dinheiro são as áreas da educação e saúde. E não só, o estudo mostra também que as cidades menores e mais pobres, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, são aquelas onde os desvios são mais escandalosos. Há descrição de políticos e servidores públicos desviando recursos destinados a hospitais, postos de saúde, remédios, escolas e merenda escolar, para comprar uísques e vinhos importados, festas, etc. Quando lemos estas notícias ficamos desanimados, achando que não há solução, ou ainda, que a solução passa apenas pela ação do poder judiciário. Muitos procuradores, porém, tem afirmado que a mera aplicação das leis não dará conta de vencer a corrupção sistêmica.
O conhecimento destes fatos já é um sinal importante do amadurecimento de nossa democracia. Mas, justamente por causa disso, abre-se uma oportunidade única para a Igreja e que não deve ser perdida: propor, como parte da sociedade civil organizada, caminhos para a melhoria da qualidade dos serviços de educação e saúde, que sempre fizeram parte da nossa tradição. A constituição de 1988 afirma que educação e saúde são direitos do cidadão e, portanto, devem ser providos pelo Estado gratuitamente. Há séculos, porém, a Doutrina Social da Igreja vem nos ensinando que este não é o melhor modo de gestão para garantir o respeito à dignidade e liberdade humanas e o bem comum. Ela afirma, ao contrário, que é melhor um Estado subsidiário que participa do financiamento de escolas e hospitais, ou seja, subsidia-os, mas deixa a gestão direta a cargo de organizações intermediárias da sociedade civil. Este compartilhamento de responsabilidades permite maior controle e garantia de serviços de qualidade. As congregações ou ONGs da Igreja que gerenciam escolas e hospitais o fazem por ideais, desejo de bem e amor ao próximo, além de serem mais econômicas e ter mais cuidado na gestão dos recursos financeiros do que a enorme máquina burocrática do Estado. Durante muitas décadas o Estado brasileiro foi refratário a esta forma de gestão, não a favorecendo, salvo em situações em que os recursos eram insuficientes ou o Estado não tinha capacidade de gestão, ou até a dificultando. Por isso, tantos colégios e hospitais católicos fecharam ou estão em grave situação econômica, muitos tendo que se desdobrar na busca de doações e financiamentos que são esporádicos e descontinuados.
Um exemplo de subsidiariedade, que ocorre em países como a Itália, é a existência de leis que permitem que escolas de ensino fundamental e médio confessionais se sustentem com duas fontes de renda complementares: uma bolsa paga pelo governo para cada aluno (e que depende da renda da família) e uma mensalidade complementar paga pelos pais. A mesma coisa se poderia fazer com os hospitais confessionais e tratamentos médicos que poderiam ser pagos pelo SUS com uma complementação para o tratamento paga pelo paciente de acordo com sua renda. Talvez poucos saibam, mas esses hospitais em SP são os que mais atendem o SUS, e estão sofrendo muito com os repasses insuficientes enquanto o governo diz que não tem dinheiro. A sustentabilidade e qualidade dos serviços à população poderia se beneficiar muito com esse sistema subsidiário e de complementariedade de pagamento.
Jornal "O São Paulo", edição 3136, 1 a 7 de fevereiro de 2017.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Cristianismo e diálogo numa sociedade ressentida


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Recebo numa rede social o post com o caso (real ou fictício) da mãe que conforta outra mãe, cujo filho presidiário está sendo removido para longe por causa das lutas entre facções. No final, a mãe que consola diz à outra que entende sua dor, porque seu filho também está longe: foi assassinado pelo filho da outra.
O post conclui com uma declaração indignada sobre o reconhecimento “excessivo” dos direitos dos criminosos. Nos comentários, aprovações e condenações entusiásticas. Refletem a polarização que há alguns anos vem crescendo na sociedade brasileira e no resto do mundo.
Essa polarização não nasce apenas das diferenças de opinião. Reflete o ressentimento e a raiva das pessoas quando não veem sua dignidade e seus esforços reconhecidos. Não só no Brasil. As visões dos eleitores de Trump sobre a situação norte-americana e de boa parte dos europeus sobre a União Europeia têm raízes semelhantes.
Na sociedade da informação, com o aprimoramento das instituições, as mazelas e os limites dos políticos se tornaram muito mais evidentes, levando ao desencanto e à indignação com seu aparente descaso pelo bem-comum. A crise econômica penaliza os trabalhadores, ameaçando-os com o desemprego, os cortes de salários, as falências, o comprometimento das aposentadorias. O Estado não consegue criar (ou manter) políticas públicas de qualidade, o caos social parece crescer, levando a insegurança ao cidadão.
O ressentimento não nasce apenas de um contexto socioeconômico e político. A sociedade multicultural, enfatizando as diferenças e a autonomia, avança na tolerância, mas ainda permite o ressentimento. Nas escolas, por exemplo, o bullying continua magoando o jovem que decidiu assumir-se homossexual, mas também afeta aquele que decidiu viver na castidade.
Sem saber como superar todas essas situações, o cidadão comum se torna presa do ressentimento, que obscurece a razão e torna as soluções ainda mais difíceis. Quem faz o discurso mais raivoso e ataca mais ao outro, parece mais inteligente e corajoso, vendendo ilusões belicosas que não constroem uma sociedade melhor. É um terreno fértil para o crescimento do autoritarismo e para a descrença na democracia.
Os embates para saber quem está certo e quem está errado pouco ajudam nesse momento. Precisamos do diálogo que permite entender as razões e motivações do outro, para construirmos juntos o bem-comum. A democracia ainda é o melhor (ou menos pior) caminho. Mas ela só amadurece no diálogo e no encontro.
As duas mães do tal post, tinham razão em sua dor, mas ressentimento e raiva só farão com que mais mães e mais filhos vivam essas tragédias.  Seu sofrimento não pode ser minimizado ou menosprezado, mas são a união e o apoio mútuo que permitem a justiça e a consolação da sua dor.
O ressentimento é mal conselheiro. Discursos não conseguem superá-lo. Como o exemplo do Papa Francisco tem procurado mostrar, apenas o amor e a acolhida incondicional ao outro podem, num momento tão polarizado como esse, criar o diálogo.
Os fenômenos sociais funcionam como reações em cadeia que se propagam e multiplicam. Um gesto de raiva gera muitos novos gestos de ressentimento e raiva. Um gesto de amor gera muitos novos gestos de amor e diálogo.
A comunidade cristã é o lugar onde gestos de amor podem acontecer e se multiplicar. Para dar nossa contribuição a esse momento histórico, temos que ter os olhos abertos para o amor recebido e nos deixar determinar por ele e não pelo ressentimento. Pode parecer ingênuo, mas é nossa melhor contribuição para construir a boa política.
Jornal "O São Paulo", edição 3135, 25 a 31 de janeiro de 2017.

Depois do annus horribilis

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Antonio Carlos Alves dos Santos é professor titular de Economia na Faculdade da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

O ano de 2016 apenas terminou, mas já é possível classificá-lo como um ano terrível, em diferentes áreas da vida nacional. A tragédia chapecoense é a mais recente e a mais dolorosa, sem dúvida alguma. Na esfera política, a crise foi se avolumando ao longo do ano até transformar-se em crise institucional que, temo, nos fará companhia por algum tempo, até o seu desfecho final que rezo para não ser trágico.
Na economia, a mais longa recessão da nossa história econômica não dá sinais de se arrefecer: a expectativa de que ela mudaria de curso, com a posse definitiva da nova administração, mostrou ser apenas mais um exercício de autoengano dos analistas econômicos, entre os quais me incluo. Imaginávamos que os novos inquilinos melhorariam as expectativas dos agentes econômicos, o que, por sua vez, traduzir-se-ia em recuperação, ainda que tênue, da economia. Não contávamos, naturalmente, com a queda em série de membros do novo gabinete presidencial e, com a fragilidade das instituições que aumentaram, infelizmente, a insegurança jurídica.
Nesta inacreditável algaravia nacional, questões fundamentais para a retomada do crescimento econômico transformaram se em verdadeiro fla-flu, em que a razão cedeu espaço para emoções e discursos inflamados. Estamos falando, naturalmente, da controvérsia a respeito da PEC 241. Em que pese todos os seus limites, ela coloca em discussão uma questão importante: a descoordenação crescente entre gastos e receitas públicas e a necessidade de se colocar um teto aos gastos. Como fazê-lo? O que incluir? Por quanto tempo? São questões importantes que devem ser debatidas com serenidade, já que a partir delas formata-se a sociedade que desejamos construir no país: mais inclusiva, ou a nossa velha conhecida fundada na defesa de privilégios?
A questão da Previdência é outro tópico que promete debates acalorados, mas que se trata de um problema real que deve ser enfrentado. Estamos vivendo mais, com isto o número de trabalhadores aposentados mantidos pelo número de trabalhadores na ativa tende a aumentar e constitui-se, portanto, em verdadeira bomba relógio. A solução do problema passa, necessariamente, pela discussão do tempo de contribuição, valor da contribuição e valor do benefício. Para que não se perpetuem injustiças, é fundamental incluir na reforma a revisão de privilégios inaceitáveis de castas bem organizadas do setor público civil e militar.
A proposta apresentada pelo atual governo acerta ao definir uma idade mínima, mas erra ao escolher 65 anos, haja vista a expectativa de vida dos brasileiros ser de 75,5 anos. Erra, também, na definição do tempo mínimo de contribuição. Esses dois erros implicam em redução no valor do benefício, já que para receber aposentadoria integral seria necessário trabalhar 49 anos.  O financiamento da aposentadoria rural ainda não está definido, mas é de fundamental importância que ela seja mantida.
Felizmente, há boas notícias em relação à inflação, que continua caindo, e o Banco Central parece ter finalmente reconhecido que esta queda permite uma redução da taxa de juros, que deverá contribuir com o esforço de evitar que a nossa longa recessão se transforme em depressão, o que nos levaria a sentir saudades do annus horribilis.
Jornal "O São Paulo", edição 3134, 18 a 24 de janeiro de 2017.

A propósito e propósitos de Ano Novo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Chegou ao fim 2016. O balanço do que nele aconteceu, em nossa vida pessoal e ao nosso redor, na sociedade brasileira e no mundo, mostra pessoas, acontecimentos e vivências que foram dádivas para nós, pelas quais muito temos a agradecer a Deus, a nossos companheiros de viagem, à vida… E também episódios dolorosos ou obscuros, que requerem correção de rota, retomada, misericórdia…
Gostaria de apontar para um fenômeno que parece ter-se agudizado nesse ano que passou. Se já há muitos anos João Paulo II chamava os tempos atuais de “noite epocal”, essa noite parece ter-se tornado ainda mais escura, e a madrugada, ainda mais distante.
É nossa impotência ante as potências que se fazem de impotentes na Síria e no Mediterrâneo, nosso sofrimento diante dos refugiados tratados com insensibilidade pela esgarçada Comunidade Europeia, nossa insegurança pelos atentados midiatizados na Europa e os ignorados no Oriente Médio ou África. Em terras nossas, é nossa indignação ante a resiliência da arcaica estrutura social e prática política e a persistência de indicadores sociais a traduzir níveis inaceitáveis de violência, desigualdade, preconceito…
Há um “mal-estar civilizatório” que se exprime numa descrença nas instituições e na verdade dos fatos, num entrincheiramento das próprias opiniões e a adesão a discursos populistas. Enfim, há um retrocesso em termos de democracia, pluralismo, liberdade, dignidade humana, justiça social… É um cenário desalentador para tantos que comprometeram a própria vida, pagando por isso até um alto preço, com uma sociedade mais humana.
Em A Ressurreição de Roma, Chiara Lubich descreve sua percepção ao passar pela “Cidade Eterna” dominada no pós-Segunda Guerra pela “sordidez e vaidades”. “Diria que o meu ideal [de vida] é uma utopia se não fixasse o pensamento Nele, que também viu um mundo igual a este, que o cercava e que, no ponto culminante de sua vida, pareceu ser arrastado por tudo aquilo, vencido pelo mal. Ele também olhava para toda esta multidão a quem amava como a si mesmo… mas não duvidava”. E continua: “Olho o mundo que está dentro de mim e me apego àquilo que tem essência e valor… olho o mundo e as coisas; contudo, já não sou mais eu que olho, é Cristo em mim que olha, e vê de modo novo cegos que devemos iluminar, mudos que devemos fazer que falem e aleijados que devemos fazer andar”. 
Na noite escura dos tempos atuais, o Natal que há pouco celebramos aponta para uma estrela, para a Luz que há de alimentar nossa esperança e ser guia em nosso caminho, Jesus.
Todavia, escreve Chiara, “não é, decerto, o Jesus histórico, ou Ele enquanto Cabeça do Corpo Místico quem resolve os problemas. Quem faz isso é Jesus-nós, Jesus-eu, Jesus-você… É Jesus no homem, naquele determinado homem… quem constrói uma ponte, faz uma estrada… É sendo outro Cristo… que cada homem traz uma contribuição típica sua em todos os campos: na ciência, na arte, na política, na comunicação e assim por diante”.
Eis aí um ótimo propósito de Ano Novo: encarando o cenário do mundo ao nosso redor, cultivar uma intimidade com Deus que leve à ação transformadora da sociedade. Motivada não por uma utopia, talvez moldada por ideologias, mas pela dimensão profética que o Evangelho incute em nós de traduzir, nas relações entre os homens, com a natureza e com os bens, o Reino de Deus que já (e não ainda) está entre nós…
Jornal "O São Paulo", edição 3133, 11 a 17 de janeiro de 2017.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

"O São Paulo" e a questão penitenciária



Por que eles e não eu?
Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3133, de 11 a 17 de janeiro de 2017.
Concordem ou não com suas posições, quase todos reconhecem o Papa Francisco como a maior autoridade moral da atualidade. Mas é justamente ele que, diante de criminosos presos, faz repetidas vezes essa pergunta desconcertante: “por que eles e não eu?”.
Apesar de toda a sua estatura e coerência moral (ou justamente por causa delas), Bergoglio sabe que não deixou de ir para a cadeia simplesmente por ser mais honesto do que os outros, mas sim porque uma série de acontecimentos fizeram com que suas decisões boas fossem mais determinantes que as más (são conclusões dele, olhando retrospectivamente para sua vida, não nossas).
Diante de mais uma chacina em presídios brasileiros, não podemos deixar de pensar nessa lição – tão singela quanto forte – do Papa Francisco.
Se observamos com atenção, encontraremos várias situações, que ocorreram com parentes, amigos ou com nós mesmos, que poderiam ter levado a erros terríveis, mas que terminaram bem porque houve apoio material e orientação adequada. Solidariedade não é conivência com o mal, mas a falta de solidariedade leva a males sempre maiores. Ser solidário não é transformar o criminoso em vítima, mas construir o bem comum.
Temos frequentemente uma visão distorcida da realidade prisional brasileira. Pensamos numa minoria de líderes criminosos que continuam mandando e desmandando de dentro das cadeias, cercados até de um relativo conforto. Mas a imensa maioria não tem sua dignidade humana reconhecida, lhes falta desde as mínimas condições de higiene até a assistência jurídica adequada. Para esses, o crime organizado se tornou um espaço de solidariedade e uma condição para sobreviver. Com isso, nossos presídios se tornam cada vez mais “escolas do crime”.
Sem dúvida, são necessárias verbas para a segurança pública. Mas não haverá dinheiro que chegue se a segurança tiver que preencher as falhas da educação, da inclusão social, dos programas de geração de emprego e renda. O buraco é mais embaixo, e temos que ter consciência disso para enfrentar adequadamente a situação.
O Estado tem que assumir sua responsabilidade. Os problemas dos presídios mostram não só falta de recursos, mas ineficiência e até rejeição a políticas e metodologias sabidamente eficazes. Pior: uma sombra de corrupção e malversação de dinheiro público paira sobre todo o sistema.
O desafio do Estado é a eficiência. O desafio da sociedade é a solidariedade. Todos temos, em casa, no trabalho, na igreja, com os amigos, a missão de mostrar que a solidariedade é diferente da conivência, de dar nossa contribuição para que o sistema prisional seja espaço de ressocialização e não de exclusão.


Criminoso bom NÃO é criminoso morto
Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3134, de 18 a 24 de janeiro de 2017.
Com as recentes chacinas em presídios brasileiros, parte da mídia e até membros do governo voltaram ao slogan “bandido bom é bandido morto”, agora na variante “é bom que eles se matem”. Mas dados científicos rigorosos não mostram correlação entre morte e sofrimento nos presídios com redução da criminalidade. Pelo contrário, mostram que a criminalidade é detida por um conjunto de medidas sociais, que ajudam a prevenir a delinquência e a reintegrar o delinquente, e de segurança pública, que aumentam a probabilidade do criminoso ser capturado e não o tamanho de sua condenação.
No Brasil, em situações críticas, a resposta política costuma ser a de endurecer as leis (pois “o papel tudo aceita”) e não a de criar mecanismos efetivos para superação dos problemas. Mas a solução dos problemas de segurança passa por (1) medidas eficientes para impedir o crime e/ou capturar o criminoso, (2) solidariedade e inclusão social, para que os jovens não sejam desencaminhados para o crime e os que presidiários sejam reintegrados à vida social – ao invés de cooptados por facções criminosas.
O discurso do “criminoso bom é criminoso morto” não nasce da justiça, mas da vingança e do ressentimento. São sentimentos com os quais não podemos concordar, mas que crescem numa população espezinhada por más condições de vida, que não vê a dignidade de seu trabalho e de seu esforço reconhecida, que se escandaliza com as mordomias e a impunidade de corruptos, corruptores e até de criminosos importantes.
Personalidades da mídia e da política que difundem um discurso raivoso e cada vez mais violento em nome da segurança pública estão, na verdade, fazendo um desfavor à população. Apontam para falsas soluções, que acabarão aumentando ainda mais a insegurança nas periferias e entre os mais pobres, vítimas de balas perdidas, truculência policial, erros judiciais, falta de perspectivas na vida.
A vingança também não ajuda os enlutados, vítimas de crimes hediondos ou que sofrem com a perda dos entes queridos assassinados.  À primeira vista, parece um consolo, mas não preenche o vazio nem cicatriza as feridas. Não ajuda a encontrar um sentido na vida capaz de superar o sofrimento e a dor. O perdão, o amor e a dedicação ao próximo são muito mais eficientes para superar o luto – e isso não é um discurso apenas da Igreja, mas de especialistas que atendem a pessoas enlutadas e vítimas da violência.
Mas tudo isso não será compreendido apenas com discursos e análises. Só uma comunidade capaz de acolher e amar tanto a vítima quanto o criminoso podem nos ajudar a ver a força social da justiça combinada à solidariedade ao amor – e assim defender realmente o que constrói o bem comum. Esse é o nosso desafio.