quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Por que a bioética se já temos a ética médica?

A Medicina objetiva o desenvolvimento, conservação e reequilíbrio da natureza física humana, porém a ela não cabe definir a integralidade do próprio ser do homem; busca entender apenas uma das dimensões da pessoa humana e não é capaz de dizer quem ela é. Se absolutizada, essa compreensão parcial leva ao reducionismo que não só restringe, mas ignora aquilo que é o propriamente humano. Conforme Viktor Frankl, psiquiatra austríaco criador da logoterapia, o reducionismo pode ser definido como um processo pseudocientífico pelo qual, fenômenos especificamente humanos - como consciência, liberdade, responsabilidade, amor, solidariedade, capacidade de projeção futura, comprometimento social e pelo meio ambiente, autotranscendência, vontade e busca de sentido – tudo isso é desconsiderado e surge, o que se pode identificar, como verdadeiro subhumanismo (Psicoterapia e sentido da vida, São Paulo: Quadrante, 1986).
Dois fatos principais provocaram a busca por uma nova ciência: os horrores nazistas quanto à exterminação e à experimentação em seres humanos – o que também foi identificado em outros países – e o incrível desenvolvimento técnico científico que possibilita atuar de maneira nunca antes pensada, sobre a vida humana desde o seu início até a sua terminalidade. É necessária uma reflexão ética que tenha como escopo a análise de objetivos, meios e consequências dos fatos, propondo caminhos que expressem quem é o homem, como deve agir e de que modo deve ser tratado. Surgiu assim a Bioética como uma ciência que se propôs ser ponte para o futuro para a preservação e defesa de cada pessoa humana em seu meio ambiente.
Imediatamente surge o apelo por esclarecimentos sobre os direitos humanos e emerge a necessidade de uma reflexão filosófica e ética: onde se fundamentam e quais são os direitos do homem, até onde se estendem e se existem aqueles inalienáveis protegidos em uma ordem de prioridade?
Novas urgências reclamam a crítica da ciência experimental, a fronteira que salvaguarda cada pessoa e a humanidade em sua totalidade, a superação das insuficiências da normativa jurídica, a reorganização dos custos para a justiça social na prática assistencial. O fundamento último deve ser oferecido pela antropologia que define o valor único de cada pessoa humana.
Nfilosofia a pergunta é o que gera toda discussão que cerca o todo e se aproxima da verdade; e, aqui está a pergunta básica: quem é o homem? Exatamente sobre este ponto fundamental se apresenta uma situação paradoxal. Diante do evidente pluralismo antropológico surgem tantas linhas de Bioética quanto são os modelos de ética de referência como o liberal radical, pragmático-utilitarista, cientista-tecnológico, sociobiologista evolutivo, subjetivismo da maioria, hipercrítico desconstrutivista.
A ética médica traz um enfoque parcial e deve se ater diante da afirmativa de que nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente lícito, e assim surgiu a Bioética. A referência que pode permanecer e apresentar base possível de ser aceita internacionalmente, é aquele que se apoia no próprio homem enquanto pessoa; justamente por ser pessoa, é um valor objetivo, transcendente e inatingível e, portanto, normativo. Este é o modelo personalista que apresenta conteúdo e método de referência: a vida humana traz em si a estrutura da totalidade unificada: a irredutibilidade da unidade física, psicológica, espiritual, onde por espiritual se constata tudo o que nele pode se confrontar com o social, o corporal, o circunstancial e, inclusive, com o próprio psíquico, fonte da liberdade, responsabilidade, consciência, da busca de sentido, da autotranscendência.
Elizabeth Kipman Cerqueira

A responsabilidade política de cada um

É falsa a percepção de que cada um de nós não pode fazer nada como indivíduo ou é impotente para mudar nossa situação política. Isso não é verdade! Vivemos um período em que existe uma grande oportunidade para se reconhecer a importância de bons políticos.
Durante décadas, deixamos os políticos em quem votamos fazerem o que bem entendessem, sem nos preocuparmos muito com eles. Quem se lembra em quem votou na última eleição? Quantos de nós não votou somente porque o candidato era conhecido ou “parecia” ser simpático ou honesto? Muitos votaram porque o nome caiu em suas mãos poucas horas antes ou no dia anterior à votação.
Há situações ainda piores: muitos votam em políticos que lhes “dão coisas”, oferecem churrascos ou prometem pequenos benefícios à população para receberem votos, fazendo muitos pensarem que o sucesso na política depende de quem melhor “compra” a população. Essas pessoas tornam-se políticos com curral eleitoral pessoal, sem propostas amplas para o bem do País, sem compromisso com um partido e, portanto, sem preocupação com a boa governança e o bem comum.
 Mas, ainda há mais: muitos políticos que chegam ao poder são pessoas sem carisma político que não têm preparação para o cargo, e estão lá apenas porque foram pesadamente financiadas por grupos econômicos poderosos e colocados no poder para defender seus interesses particulares.
Hoje, temos oportunidade de conhecer melhor os políticos, como pensam e o que falam. Mas essa oportunidade, surgida em meio a uma grande crise de representatividade que chegou a prejudicar gravemente o País e a economia, ainda precisa ser muito mais aproveitada.
É preciso que cada um de nós busque conhecer melhor cada político, sua origem, sua escolaridade, sua profissão, sua fortuna e riqueza declarada, seus atos políticos prévios, seus problemas com a justiça. Precisamos ajudar nossos parentes e amigos a se informarem e a divulgar essas informações.
Como o Papa Francisco tem dito, essa é uma responsabilidade nossa como cristãos. Ser cristão é trabalhar para o bem comum, se interessar pelo mundo e amar a todos, como fez Jesus Cristo.
Hoje, há muitos meios à nossa disposição nas redes sociais para se obter essas informações. Não nos esqueçamos de forma alguma que foi por nossa responsabilidade que eles chegaram no Congresso.
Ana Lydia Sawaya
Jornal "O São Paulo", edição 3162, 16 a 22 de agosto de 2017.

O caso da barragem de Mariana e a produção de provas legais

Nos últimos dias, os brasileiros se escandalizaram com um novo lance da tragédia do rompimento da barragem em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. O processo, que até hoje corre na justiça, foi suspenso porque a defesa dos acusados alegou haver ilegalidades na investigação na qual foram obtidas provas contra os acusados – o que poderia levar à anulação do processo como um todo. Vale ressaltar que houve apenas uma suspensão do processo, para que o Ministério Público e a Polícia Federal possam demonstrar a legalidade das provas, e não sua extinção.
Coisas assim tem acontecido com cada vez mais frequência no Brasil: aparentemente, os réus se livram das condenações em função de tecnicalidades jurídicas, criadas originalmente para preservar o direito de defesa e a privacidade dos acusados, e não pela demonstração de sua inocência. Assim como a maioria da sociedade, a Doutrina Social da Igreja também reconhece que o Estado tanto deve infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos quanto não violar o direito dos inquiridos e não debilitar o princípio da presunção de inocência (cf. Compêndio de Doutrina Social da Igreja, 402-405).
Mas, então, o que está acontecendo em casos como esse, do processo judicial de Mariana, e o que pode ser feito para que nossa justiça atue de forma mais segura e efetiva?
O Brasil, como um Estado Democrático de Direito, deve garantir sempre o mais absoluto respeito ao devido processo legal constitucional, em que todos, em especial o Estado, defendem o respeito às normas que regulam nossa sociedade. Em se tratando de processo penal, na qual a consequência final, no mais das vezes, é a perda da liberdade, caberá ao Estado provar a responsabilidade dos acusados. Nesse caso, o respeito às leis que regulam o processo é garantia para todos de que a justiça será realizada. É dever do Estado impedir o uso de provas ilícitas e proteger a sociedade contra fraudes e manipulações que ofendem a dignidade humana. Assim, a Constituição Federal, no art. 5º, LVI, e o Código de Processo Penal, em seu art. 157, dispõem que são inadmissíveis e devem ser removidas do processo as provas ilícitas, obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
A impunidade nunca deve prevalecer, mas a punição a qualquer custo impõe injustiça igual, senão maior. Se desejamos professar a justiça e a igualdade social, não podemos admitir que o Estado viole normas para punir aqueles que as infringiram.
O direito de produzir provas é considerado como direito fundamental, todavia, violar normas que regem essa produção é ameaça a esse mesmo direito. O Judiciário tem admitido prova ilícita somente quando é a única forma de provar a inocência, pois a formalidade jurídica nunca deve ser um fim em si mesma, devendo servir à defesa dos direitos e garantias constitucionais do cidadão.
É dever do Estado garantir à formalidade jurídica uma finalidade correta. Ir “além do legalismo” na produção da prova, em busca da condenação razoável (“justiça”), pode significar ir “além do
Direito”. Esse perigoso caminho, fruto do desejo legítimo de justiça, pode não ter volta e legitimar um futuro de violações e abusos à dignidade, à privacidade e à integridade física. Cabe ao Estado provar que pode fazer justiça, punindo culpados, sempre cumprindo a lei!
Para isso, é preciso que haja suporte aos órgãos de investigação, principalmente à Polícia, bem como exigir uma atuação do Ministério Público eficiente e integrada com a polícia investigativa, para produzir provas seguras, sem fragilidades técnicas e legais.
Claudio José Langroiva Pereira
Jornal "O São Paulo", edição 3162, 16 a 22 de agosto de 2017.

Mais uma vez a Vida

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. 

Não faz muito tempo, foi publicada nos jornais uma coluna de uma militante “pro-choice” com o sugestivo título “Deixe a menina transar em Paz”. Vou resumir alguns dos pontos principais: primeiro, a autora indica que a maioria dos brasileiros não aceita o aborto como método de controle da natalidade, mas, ao mesmo tempo, aceita a lei de 1940, que considera aceitável o aborto em caso do estupro. Ironicamente, a autora termina por reforçar o posicionamento da Igreja Católica, conforme vou passar a explicar.
Com razão, o texto indica que, se aceitamos que a vida começa na concepção, em qualquer ato de aborto mata-se o “inocente embrião” (palavras dela). Ainda segundo a autora, ao isentar os casos de estupro para o aborto, em 1940, “o Estado brasileiro já decidiu que um embrião não é vida”. Sem dúvida, a autora adota essa ideia (ela até não gosta da palavra “nascituro”, ainda que uso jurídico dessa seja multissecular) e diz que o embrião seria apenas “um punhado de células, ou um feto de menos de 12 semanas, sem sistema nervoso desenvolvido e nenhuma possibilidade de consciência”. Sobre esse arremedo de ciência já se discutiu em outros momentos.
O assunto me fez voltar à Encíclica Evangelium Vitae, de São João Paulo II (1995). Nela, o santo Papa fala das ameaças à vida em nossos tempos, em particular da prática do aborto e da ideologia que a sustenta. Reafirma a doutrina tradicional de que, uma vez que o embrião já é um membro da espécie humana, matá-lo é quase equivalente ao infanticídio. E no caso de estupro? Curiosamente, os documentos pontifícios não usam essa palavra, como se se fosse sensível demais para uma mensagem religiosa. O Catecismo menciona-o rapidamente, mas não em conexão com gravidez. Mas, há uma menção suave ao fato, pois esse é impossível de ser ignorado. Assim diz o parágrafo 11 da Encíclica: “Não faltam situações de particular pobreza, angústia e exasperação, onde... as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida”. A opção pela vida, de qualquer forma, é reafirmada. Em tempos mais recentes, Francisco reitera algo semelhante no parágrafo 214 da Evangelii Gaudium : “Não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana. Mas é verdade, também, que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza”. A preocupação pastoral é aí evidente. João Paulo II usa o termo “heroísmo” para falar da atitude subjetiva da gestante. No mesmo documento, há uma menção ao “jovem rico”, para ilustrar de que heroísmo se trata. Os dois papas concordam no mesmo ponto: a situação exige acolhimento. A gravidez indesejada, portanto, é motivo para o amor entre os que cercam a gestante, fazendo com que essa supere o medo, a solidão e a preocupação financeira. No caso extremo do estupro, pode-se até superar o trauma e a vergonha, e perceber que o nascituro é inocente no crime bárbaro que foi cometido. Assim, o heroísmo se torna algo mais próximo de nós – “o que é impossível para os homens é possível para Deus”.
Jornal "O São Paulo", edição 3162, 16 a 22 de agosto de 2017.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O Judiciário e a legalização do aborto

Caio de Souza Cazarotto é advogado e mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP.

A recente notícia do bebê baleado no ventre materno consternou os brasileiros. Esta situação trágica nos coloca mais uma vez diante do mistério e da realidade da vida nascente, a ser protegida e acolhida.
As pesquisas do Ibope indicam que 80% dos brasileiros não deseja a legalização do aborto e por isto o Congresso tende a rejeitar os projetos de lei nesse sentido. Assim, os grupos minoritários favoráveis ao aborto, ao invés de recorrer ao Legislativo, têm optado pelo ativismo judicial, especialmente propondo ações junto ao Supremo Tribunal Federal, pleiteando uma “interpretação” no sentido de que nossa legislação permite o aborto. Portanto, embora milhões de brasileiros, representados no Congresso, manifestem-se majoritariamente contrários ao aborto, 11 Ministros, nenhum deles eleito pelo povo, podem “interpretar” as leis de modo favorável à prática, embora elas digam expressamente o contrário.
Já há precedentes desse ativismo do STF, alargando as possibilidades do aborto “legal” no Brasil. Em 2012, no julgamento da ADPF 54, o STF travestiu-se de legislador e julgou, por maioria, não ser crime o aborto de nascituro com anencefalia. Não considerou sequer os graus dessa deficiência e os casos de sobrevivência prolongada de crianças que tiveram esse diagnóstico, como Marcela de Jesus e Ruhama.
Em 2016, no julgamento do Habeas Corpus no 124.306, em favor dos integrantes de uma clínica clandestina de aborto, um dos Ministros do STF, acompanhado por outros dois, sustentou a tese, sem base alguma na Constituição, de que nas doze primeiras semanas de gestação o aborto é permitido.
Esse julgamento abriu as portas para que o PSOL ingressasse com a ADPF 447, visando “descriminalizar” o aborto nas doze primeiras semanas de gestação. A alegação principal é que, durante esse período, o bebê no ventre materno (nascituro) não tem autonomia para sobreviver fora do útero e, portanto, não pode ser considerado pessoa. Outro argumento é a suposta defesa da dignidade da mulher. Também se argumenta que nos países considerados mais “avançados” o aborto já é completamente legalizado. Porém, o que se verifica por experiência é que o aborto configura um retrocesso: hoje no Canadá, um país “avançado” que já tem o aborto legalizado, se discute até quando é lícito realizar o aborto pós-parto, havendo a possibilidade de esse “assassinato legal” chegar até os dois primeiros anos de vida da criança, o que seria um claro retorno à barbárie.
O respeito à dignidade das mulheres e das crianças não se alcança com a prática do aborto. Não sejamos ingênuos: se o STF julgar procedente a ADPF 447, esse será mais um passo na legalização total do aborto no Brasil e uma vitória da cultura da morte, contra os anseios do povo. O julgamento está marcado para o próximo dia 23 de agosto.

O que é Doutrina Social da Igreja?

A Doutrina Social da Igreja (DSI) constitui um corpus de escritos – Constituições e Exortações Apostólicas, Cartas Encíclicas, Decretos e Declarações, e outros documentos – que versa sobre a questão social. Por “questão social” entende-se o conjunto de problemas que afetam o nível de vida das pessoas, famílias ou comunidades.
Esse “corpus de escritos” inaugura-se com a publicação, pelo Papa Leão XIII, da Carta Encíclica Rerum Novarum, em maio de 1891. O contexto histórico era o da Revolução Industrial, com suas consequências e implicações para a vida dos trabalhadores e famílias. As turbulências desse período, marcado pelo surgimento da máquina, do movimento e da produção em grande escala, trouxeram mudanças positivas e negativas para a sociedade. Alguns benefícios se consolidaram, enquanto grande número de pessoas ficou à margem do progresso tecnológico. Viu-se que tal progresso e o crescimento econômico, por si só, não conduziam a um “desenvolvimento integral”, conforme a expressão de Paulo VI.
As transformações sociais iriam mostrar que a DSI não pode ser um conjunto de verdades definitivas e acabadas, a serem transmitidas à posteridade. Nasce o debate entre doutrina e ensinamento. Enquanto o conceito de doutrina denota uma série de dogmas fechados, definidos e imutáveis, o termo ensinamento mantém um caráter aberto, dinâmico e flexível. A primeira cria uma espécie de instância hermética de princípios pétreos e cristalizados, válidos para todos os tempos e lugares. O segundo, atento aos “sinais dos tempos”, comporta-se como um organismo vivo: é capaz de incorporar os novos desafios que históricos e, ao mesmo tempo, rejeitar o que se tornou anacrônico ou fossilizado.
Paulo VI, na Carta Encíclica Octogesima Adveniens, de 1971, ilustra essa mudança de enfoque: “Com todo o seu dinamismo, o ensinamento social da Igreja acompanha os homens na sua busca (...). Desenvolve-se por meio da reflexão, amadurecida no contato com as situações dinâmicas deste mundo, sob o incentivo do Evangelho, como fonte de renovação, desde o momento em que sua mensagem é aceita na plenitude de suas exigências. Desenvolve-se com a sensibilidade própria da Igreja, marcada pela vontade desinteressada de serviço e atenção aos mais pobres; finalmente, alimenta-se de uma rica experiência multissecular, que lhe permite assumir, na continuidade de suas preocupações permanentes, as inovações atrevidas e criativas que a situação presente no mundo exige” (OA, n. 42).

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Jornal "O São Paulo", edição 3161, 9 a 15 de agosto de 2017.

A opção beneditina no mundo anticristão

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Marcelo Musa Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila” para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella.

Durante seu pontificado, são João Paulo II identificava a “cultura da morte”, expressa sobretudo no aborto e na eutanásia, como um dos alvos prioritários de seu combate. Para seu sucessor, Bento XVI, o inimigo era o relativismo, expresso sobretudo na privatização dos julgamentos morais, na aceitação de modos de vida incompatíveis com os ensinamentos de Jesus no Ocidente que, um dia, foi cristão, e na visão de que todas as religiões e modos de ver o mundo são igualmente válidos. Eram, claramente, tempos de combate. Apesar de algumas vitórias, a paisagem atual dos países modernos torna difícil discordar da conclusão do escritor católico americano Rod Dreher: a guerra cultural acabou, e nós perdemos.
Há muitos sinais claros. A eutanásia tornada lei em muitos países, assim como o aborto, por exemplo. Ou a transformação do ato homossexual, um mal objetivo, na formulação recentíssima do Catecismo da Igreja Católica de 1993, não apenas em motivo de orgulho a ser celebrado nas ruas das grandes cidades do mundo todo, mas em tema de plataformas políticas articuladas e, em grande medida vitoriosas, como a do “casamento” gay e a teoria de gênero.
Dreher é autor de um livro recente que vem sendo muito discutido nos EUA: The Benedict Option (A Opção Beneditina, em tradução livre.) A ideia vem de são Bento, o jovem aristocrata romano que, diante da decadência irresistível do império, retirou-se para uma caverna para rezar e levar uma vida reclusa dedicada exclusivamente a Deus. Como efeito colateral, Bento salvou a civilização. Em torno dos mosteiros que seguiam a regra escrita por são Bento reorganizou-se a vida social e econômica da Europa depois do colapso do Império Romano. Dos mosteiros beneditinos partiram os monges que converteram a Inglaterra, a Irlanda, a Alemanha, a Holanda e deram forma concreta à Cristandade. Nos mosteiros beneditinos copiaram-se à exaustão as obras da Antiguidade cristã e pagã que chegaram até nós.
Uma vez que o catolicismo, e o cristianismo em geral, foi derrotado na esfera pública que antes moldava, restaria aos católicos retirar-se e viver, como se em comunidades fechadas, a vida apostólica que Jesus ensinou. A esperança é que, no afã de salvar suas almas, os católicos salvem, de novo, a civilização.
Para um grupo restrito de pessoas esse movimento de retirada do mundo pode ser vivido literalmente em pequenas comunidades de famílias, por exemplo. Para a maior parte, no entanto, isso é impossível. A opção beneditina, porém, longe de ser uma retirada de quem foge da batalha, pode ser vivida como a concentração no essencial do catolicismo.
Dreher tem sido acusado de ser derrotista e de minar os esforços de quem se mantém na luta. Não é necessário que seja assim, no entanto. A questão é que as opções que o mundo ultra-secularizado e crescentemente anticristão vem adotando não têm futuro. A vitória da cultura da morte resulta apenas na morte. A opção beneditina é preservar, pois, a semente plantada por Jesus. Semente que um dia deu origem e por mais de dois milênios sustentou a Civilização Ocidental, que agora a recusa. Preservar essa semente em toda sua pureza e força.
Para isso, é necessário que os católicos redescubram integralmente o tesouro que foi confiado à Igreja. Sacramento de união com Deus, a Igreja não é uma ONG a serviço do mundo e de seus objetivos, coisa que o papa Francisco deixou claro em uma de suas primeiras declarações como papa. O que a Igreja tem a oferecer ao mundo é a presença de Deus na eucaristia. E é realizando os quatro fins da celebração da eucaristia -adoração e ação de graças a Deus; reparação e petição pelo mundo- que os cristãos podem e têm que “combater o bom combate”.
Jornal "O São Paulo", edição 3161, 9 a 15 de agosto de 2017.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"Sob a espada de César"



Reflexões sobre o caso de Charlie Gard

Dalton Ramos - Professor Titular de Bioética da USP. Membro Correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita - Vaticano).

Charlie Gard era um bebê inglês de 11 meses. Tinha uma doença genética que provocava um tipo de atrofia muscular progressiva com prognóstico de morte ainda no primeiro ano de vida. Dependia, para sobreviver, de um suporte de ventilação mecânica, de alimentação e hidratação. Os médicos do hospital queriam desligar os aparelhos alegando que não havia mais tratamento possível. Os pais de Charlie, não concordando com os médicos, mobilizaram-se para buscar todos os tratamentos possíveis, inclusive os experimentais, ainda em fase de pesquisa. Mas uma Corte Inglesa, concordando com os médicos do hospital, entendeu que devia-se desligar os aparelhos de suporte de vida. Depois de grande repercussão na mídia internacional, de uma batalha judicial e na contramão da vontade dos pais, os aparelhos foram desligados e, em 28 de julho de 2017, Charlie morreu.
Sgreccia começa seu elenco de explicações lembrando que, paradoxalmente, quem está em situação mais vulnerável, como era o caso de Charlie, tem direito de uma atenção maior. É um princípio básico da ética do cuidado, mas recordo que também orienta todas as políticas públicas que buscam a equidade social no mundo de hoje. Além disso, o paciente incurável nunca perde a sua dignidade humana.
Do ponto de vista social, Sgreccia continua sua reflexão, promoveu-se uma cultura do descarte e uma lógica economicista. Mesmo que não se tenha dito explicitamente, prevaleceu a ideia de que não se deve gastar com pessoas que não representam uma força de trabalho para a sociedade. Assim, os doentes incuráveis com grandes limitações e os idosos são pensados como “cidadãos de segunda classe” que podem ser descartados pela sociedade.
Posteriormente à morte de Charlie, que ocorreu em uma clínica longe dos pais, Sgreccia comenta, em outra publicação, que aos pais foi impedido um direito que é parte do seu "ser pais", que é ver a criança morrer em seus braços, e vê-lo morrer naturalmente. Morrer é parte da vida, não é um nada; é um momento importante da existência.
Numa carta comentando o caso do pequeno Charlie, D. Prosperi e F. Corsi escreveram que “Para não sofrer seria necessário não amar”.  Ser capaz de um olhar amoroso que oriente as decisões técnicas e os dilemas éticos é o núcleo de toda a questão e o ponto de partida para identificar o caminho a ser seguido nessas situações. Isso permite reconhecer e respeitar a dignidade da pessoa e se comprometer com seu bem integral.
Testemunhei recentemente a experiência de uma gestante que recebeu o diagnóstico de um gravíssimo comprometimento da vida do feto, com prognóstico de morte do nascituro logo após o parto. Ela teve amigos que a ajudaram a viver esse momento e encontrar uma equipe hospitalar disposta a acolhê-la e ampará-la, levando a termo a gravidez, mesmo existindo a previsão legal para a realização de aborto. Assim, pode ter em seus braços seu filho pelos 40 minutos que este viveu, do parto até sua morte. Nos testemunhou que estes minutos foram “os mais bonitos de sua vida”.

Prudência, precaução e clima

Diante do artigo de W. Balera (O clima e o final dos tempos), recém-publicado nessa coluna, alguns perguntaram se o aquecimento global não seria incerto e discutível, inadequado ao magistério da Igreja. Ora, um tema totalmente consensual pouco necessita de exortações, a maioria dos pontos da doutrina social católica são tomadas de posição diante de questões polêmicas.
Para os norte-americanos, a questão climática se tornou partidária principalmente depois que Al Gore, candidato democrata à presidência derrotado em 2000, foi um dos ganhadores do Nobel da Paz em 2007 por sua militância pela redução dos gases que causam o aquecimento global, o principal dos quais é o gás carbônico (CO2). Desde então, a oposição dos republicanos à redução desses gases – que existia em por razões econômicas – se tornou sistemática.
Agir com prudência, na visão católica, significa agir com decisão e responsabilidade em prol do bem comum (Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 547ss). Para isso, deve-se buscar uma visão totalizante, que supere os partidarismos.
O aquecimento global tem considerável base científica. A maioria dos especialistas considera que existem evidências suficientes de um aumento gradativo da temperatura do planeta, com graves consequências para o modo de vida das populações. E é bem documentado o efeito de retenção de calor do CO2, cuja concentração está aumentando na atmosfera em consequência da poluição.
O consenso pode não ser total, mas o compromisso dos países do G-20 quanto a essa questão mostra a solidez da posição defendida pelo Papa Francisco na Laudato si’ (LS 23ss): apenas os Estados Unidos não têm se comprometido com uma redução drástica das emissões de CO2.
Os que questionam esse consenso, se baseiam nas observações, reconhecidas pela comunidade científica, de que houveram aumentos da temperatura do planeta – associadas com aumentos da concentração de CO2 na atmosfera – em períodos anteriores à existência do ser humano na Terra. Portanto, esse fenômeno ocorre também de forma natural. O que não consideram é que a ação humana pode combinar-se com as causas naturais, tornando o problema muito mais grave.
Por isso, a doutrina social da Igreja julga a questão climática segundo o princípio da precaução: devemos diminuir a emissão dos gases que causam o aquecimento global, mesmo que seja só para evitar o risco de piorar uma ameaça natural (CDSI 469).
Nesse caso, ser prudente significa investir em fontes alternativas de energia, que reduzam a emissão de CO2 e gases semelhantes.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3160,2 a 8 de agosto de 2017.