sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Fome e fome de Justiça

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke é membro do Movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova e articulista da revista Cidade Nova.

“No mundo são produzidos alimentos mais do que suficientes para todos; contudo, 815 milhões de pessoas passam fome. ” É o que consta no relatório “Quanto falta para alcançar a #FomeZero? O estado da seguridade alimentar e da nutrição no mundo 2017”, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Na última década, a fome global estava em declínio; no último ano, porém, ela voltou a crescer, afligindo especialmente as crianças e comprometendo para sempre a vida futura de toda uma geração. É um enorme desafio para que se alcance a meta de zerar a fome no mundo até 2030.
Dentre suas causas, o relatório aponta os conflitos violentos, as mudanças climáticas e a recessão econômica global. A FAO constata que o número de conflitos violentos – não somente guerras entre Estados, mas também guerras civis, grupos armados etc. – aumentou dramaticamente (cerca de 125% desde 2010). As secas e as enchentes, agravadas pelas mudanças climáticas, refletem diretamente nas colheitas. E a recessão econômica tem impacto nas exportações de commodities, receitas fiscais e aumento do preço dos alimentos, restringindo o acesso a estes por parte das populações empobrecidas.
O relatório cita também o impacto das populações deslocadas (refugiados e migrantes) no cenário da fome. Um em cada 113 habitantes do Planeta foi forçado a abandonar a própria terra.
Essa crise humanitária chama a atenção para dois aspectos. Em primeiro lugar, não se trata de meros números estatísticos, mas de pessoas, filhas de Deus, privadas de condições mínimas de subsistência e lesadas em sua dignidade. Também não se trata de decorrência de fatalidades, mas de consequência de ações humanas, de escolhas de governos e de sociedades (das quais em certa medida compartimos). Consequências que se estendem ao Planeta inteiro (um exemplo é a questão dos refugiados).
Benjamin Barber, estudioso norte-americano da interdependência dos países, recentemente falecido, afirmou que “interdependência significa que nós podemos criar ou um mundo seguro para todos ou então, um mundo que não é seguro para ninguém”, acrescentando: “Uma vez que os desafios que devemos enfrentar hoje são globais, também as respostas encontradas devem ser tais”.
O ponto é que tipo de visão global temos: a supostamente universalista da cultura ocidental-europeia? a da mundialização econômica neoliberal? a dos interesses estratégicos geopolíticos?
Chiara Lubich, a fundadora do Movimento dos Focolares, propõe: “É a fraternidade [que ela entende a partir do Evangelho] que pode dar hoje novos conteúdos à realidade da interdependência. É a fraternidade que pode fazer que floresçam projetos e ações no complexo tecido político, econômico, cultural e social de nosso mundo… A profunda necessidade de paz que a humanidade hoje exprime diz que a fraternidade não é apenas um valor, não é apenas um método, mas é um paradigma global de desenvolvimento político…”
Essas questões todas ensejam uma atualização da obra de misericórdia de dar de comer a quem tem fome e da bem-aventurança da fome de justiça. Há muito por fazer com urgência – os “povos da fome” não podem esperar até que haja paz: das escolhas de estilo de vida conscientes aos gestos de solidariedade, do engajamento no Terceiro Setor à participação na elaboração de políticas públicas, da formação de opinião pública à escolha dos governantes com suas visões de mundo. Consciência e ações em nível local e planetário…
A crise humanitária da fome – em última análise, tradução da crise de humanidade de nossos tempos – não é questão apenas dos “grandes da Terra”; também nós, “normais cidadãos” temos nossa tarefa a cumprir.
Jornal "O São Paulo", edição 3171, 18 a 24 de outubro de 2017.

A chaga do desemprego

Wagner Balera é professor titular de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

No contexto provocado pela crise mundial, assume particular relevo a chaga do desemprego (expressão forte de João Paulo II, na Laborem exercens, 1981, nº 8).
De fato, esse dado alarmante está inserido na configuração econômica mundial que se apresenta nos últimos decênios.
Essa marcha pode ter sido o motor da crise ou, até mesmo, o primeiro sinal de que as coisas não caminham muito bem.
Há duas maneiras de se refletir sobre o tema.
Poderíamos entender a crise como fenômeno conjuntural, apto a impor aos povos certas restrições que, em breve, desaparecerão. Ou, como também se cogita, a crise pode ter vindo para ficar porque significa quase que um rearranjo das camadas profundas da economia.
Já se considerarmos o tema sob o enfoque puramente econômico, se concretiza, a olhos vistos, o processo de globalização das economias, ditado pelas corporações transacionais que, detentoras do capital e das riquezas, elegeram o predomínio das regras do mercado; a garantia da livre concorrência e o respeito absoluto aos contratos (ainda que se trate de contratos leoninos) como a “Constituição” do mundo sem fronteiras.
A crise mundial põe em pauta o mais social de todos os riscos: o desemprego.
Além das conhecidas formas de desemprego sazonal e friccional, que certamente seguirão existindo na aldeia global, o fenômeno do desemprego estrutural irá impor redução permanente dos postos de trabalho, em todo o mundo.
Registra a Organização Internacional do Trabalho que já são duzentos milhões os desempregados em todo o mundo e que esse número cresce à razão de dois milhões por ano.
Esse dado, no entanto, corresponde só parte do quadro. São milhões de milhões aqueles que nunca obtiveram posto formal de trabalho, que nem mesmo figuram em qualquer estatística.
Decerto essa chaga, ao se alastrar, acirra a questão social e provoca como resultados os fenômenos da fome, da mortandade, da criminalidade...
O que provoca essa chaga?
Segundo São João Paulo II: na base da economia contemporânea e da civilização materialista há uma falha fundamental ou, melhor dito, um conjunto de falhas ou até um mecanismo defeituoso, que não permite à família humana sair de situações tão radicalmente injustas. (Dives in misericordia, 1980, nº 11).
Que a comunidade mundial volte a pôr em pauta a instauração urgente de uma nova Ordem Econômica Internacional, que há mais de quarenta anos a ONU vem propondo e adiando.
Não é possível que tarde essa remodelagem da economia a fim de que o exercício do trabalho seja possível a todos.
Jornal "O São Paulo", edição 3171, 18 a 24 de outubro de 2017.

Morte natural e meios artificiais de prolongamento da vida

A Medicina avança e oferece recursos cada vez mais sofisticados para prolongar a vida humana. Mas tais recursos, por vezes, limitam-se a retardar a morte, prologando a vida de modo precário e penoso. Estende-se deste modo o sofrimento, a dor e a angústia do paciente e da família. É o que na linguagem médica e jurídica se conhece por distanásia: tratamentos fúteis ou inúteis, desproporcionais, sem benefícios associados aos procedimentos, por vezes invasivos, que se podem empregar. Para evitá-lo, o Código de Ética Médica dispõe que o médico, diante de situações clínicas irreversíveis e terminais, pode prescindir de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários (art. 41, § 1° do Código de Ética Médica). 
Evitar procedimentos desproporcionais não é o mesmo que omitir os recursos ordinários devidos ao paciente, como alimentação ou hidratação, provocando direta ou indiretamente a sua morte. Isto poderia caracterizar a eutanásia. Trata-se de lidar com a morte e com o sofrimento de um modo correto – a chamada ortotanásia – que implica uma abordagem humana e justa, para a qual convergem o direito e a medicina.
Sabemos que entre os desafios bioéticos está a humanização da dor e do sofrimento humano, mas para muitas pessoas a morte se apresenta como um “tabu”. Como consequência desta negação, pessoas que sofrem de doenças incuráveis, em estado terminal, são muitas vezes submetidas de modo até desumano a tratamentos extremos, no intento de postergar a morte a qualquer custo. Porém, ao invés de se prolongar artificialmente o processo de morte, convém considerar os meios para amenizar o sofrimento a lançar o mínimo de stress nesses momentos tão difíceis. O cuidado dos pacientes próximos ao período de óbito envolve diversas atitudes e compromissos, como garantir o controle da dor, assim como tender à integração de aspectos clínicos, psicológicos, e sociais - com a companhia, na medida do possível, dos familiares-, e espirituais. 
Vale mencionar o exemplo de São João Paulo II (BUZZONETTI, R. Deixem-me partir: o poder da fraqueza de João Paulo II. São Paulo: Paulus, 2006, p. 71-72), que propiciou a todos nós um vivo testemunho de equilíbrio entre saber cuidar da própria saúde e ter maturidade para viver bem seus últimos momentos:
 Na manhã de sábado, 2 de abril, pelas 7h30 foi celebrada a missa na presença do Santo Padre que já começava a revelar indícios, embora descontínuos, de comprometimento de seu estado de consciência. Pelo fim da manhã, registrou-se uma brusca subida de temperatura. Pelas 15h30, com voz fraquíssima e palavra estropiada, em língua polaca, o Santo Padre pedia: ‘Deixem-me partir para o Senhor’. Os médicos davam-se conta de que o fim estava iminente e que qualquer novo procedimento terapêutico agressivo teria sido inútil. Pelas 21h37 o Papa exalava seu último suspiro.
Dra. Carolina C. Cervone, Advogada e Diretora do Instituto Bio-10 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Maria no Sínodo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Catão, teólogo com doutorado pela Universidade de Estrasburgo (França), foi professor no Instituto Pio XI e na Faculdade São Bento, autor de vários livros, tais como "O que é a Teologia da Libertação", "Em busca do sentido da vida" e "Espiritualidade cristã".

Comemorando o Ano Mariano Nacional, o Cardeal Scherer, nosso arcebispo, nos brindou com a carta pastoral Viva a Mãe de Deus e nossa! Na oportunidade dos diversos aniversários marianos deste ano, recorda a doutrina mariana da Igreja, dá orientações detalhadas sobre várias práticas pastorais/devocionais e termina, “invocando, com Nossa Senhora Aparecida, o Espírito Santo, sobre o caminho sinodal da arquidiocese e a graça de um novo vigor evangelizador e pastoral”.
Ao recordar a doutrina, defende a posição católica contra as clássicas objeções da grande maioria das igrejas e denominações protestantes, seguindo o importante capítulo VIII, sobre o lugar de Maria no mistério de Cristo e da Igreja, da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen gentium, promulgada pelo Concílio Vaticano II, em 1964.
 Não nos parece, então, inútil relembrar alguns aspectos das longas e, por vezes, apaixonadas discussões entre os padres conciliares a respeito de como situar Maria no mistério de Cristo, exatamente em relação à Igreja.
Forte corrente mariológica dentre eles defendeu, até quase o fim das discussões, que Maria constituía, digamos, um mistério especial. Assim pensavam ora porque tinham uma concepção prevalentemente institucional e canônica da Igreja, ora porque consideravam os privilégios da Mãe de Deus como carismas, no sentido técnico do termo, expressões excepcionais do dom de Deus, em vista da santificação da Igreja.
Foi preciso decidir no voto, se a doutrina sobre Maria deveria se inserir na Constituição sobre a Igreja, tratando-a como membro da Igreja, ou se seria objeto de um documento próprio, dado o lugar particular que ocupa no desígnio salvador de Deus.
Na votação excepcional não se alcançou a maioria regulamentar dos dois terços, mas o papa Paulo VI acolheu a tese de que Maria era a expressão acabada da santidade, membro eminente da Igreja, por estar como ninguém próxima de Deus, como Mãe de seu Filho, santificada por Ele, como todos nós, participantes da mesma santidade.
Todos os cristãos, acolhidos pelo Pai num mesmo Povo, encabeçados por Cristo, filho de Maria, num mesmo Espírito, formamos a Igreja, expressão histórica como que “o sacramento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”, como diz a mesma Constituição Lumen gentium, que, por isso não podia deixar de incluir Maria.
A Igreja é, antes de tudo, um mistério de santidade, participação na vida de Deus, na qual somos introduzidos pela Palavra de Deus encarnada, Jesus, que nos santifica a todos, por seu gesto salvador de amor, entregando-se na cruz como homem.
A Igreja é obra da graça. A humanidade de Jesus é santa e vem de Maria, “cheia de graça”, valendo-lhe o título de Mãe da Igreja, Mãe do Povo de Deus. A santidade tem primazia sobre todos os dons hierárquicos e carismáticos.
Em clima a de sínodo, não se pode esquecer essa grande lição do Vaticano II, de que a santidade Jesus, graça capital vivida em plenitude por sua Mãe, é o lugar de Maria na Igreja, no mistério cristão.
Jornal "O São Paulo", edição 3170, 11 a 17 de outubro de 2017.

A ética para um futuro de esperança

Léo Pessini, doutor em Teologia Moral-Bioética e pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, pelo St. Luke`s Medical Center, em Milwaukee, nos EUA. Atualmente exerce a função de Superior Geral dos Camilianos, em Roma.

Ao longo das discussões do 41º. Congresso de Teologia Moral, realizado em São Paulo, no Centro Universitário Salesiano (UNISAL)/Campus Pio XI, de 28-31 de agosto de 2017, fizemos a dolorosa constatação, quase que em uníssono, é que hoje existe uma crise de confiança no futuro. Cresce assustadoramente o número dos ateus em relação a um futuro promissor para a humanidade.  O nosso estimado e querido Papa Francisco é o único no mundo de hoje, entre os líderes mundiais que tem a coragem de falar a respeito de necessidade de esperança e que temos que nos cuidar dos “profetas da desgraça”!  Não é à toa que a última obra póstuma de Zigmunt Bauman, este pensador que faleceu no início de 2017 tenha como título Retropia.   Ele afirma que em relação ao futuro temos somente coisas ruins anunciadas: aquecimento global, crescente exclusão dos migrantes pobres, crescimento da xenofobia (Europa), falta de emprego para todos os que entram no mercado, globalização que aumenta a exclusão, entre outros.  Neste sentido o progresso em curso, “deixa de ser uma benção” para se tornar também uma “maldição”. E o único lugar onde vamos nos encontrar realmente “seguros” será no passado. Daí a tendência “retro”, isto é, de ver o futuro no passado!  Bauman chega a afirmar na conclusão de seu pensamento, que se não formos capazes de nos dar as mãos frente a estes desafios que nos atormentam, “ganharemos todos sepulturas comuns”.
Assim lembramos, nesse Congresso de Teologia Moral, do que já dizia o teólogo italiano de renome internacional, Bruno Forte, hoje bispo de Chieti (Italia), no tocante a realidade em que hoje vivemos.  Na sua palestra no Congresso Internacional de Teologia Moral, emTrento, Itália, em 2010, utilizou, para descrever os tempos de hoje,. a metáfora do naufrágio, no bojo da qual nasce a necessidade de ética e transcendência. Afirma Forte que o barco da humanidade naufragou no mar revolto da história, e os instrumentos que possibilitariam navegação tranquilo, direção certada e chegada a terra firma estão todos danificados. Estamos perdidos em alto mar, e com sério risco de afogamento. O que fazer?  Os náufragos necessitam uns dos outros para sobreviver. Se forem uns contra os outros, é o fim de tudo. Se se ajudarem e uns forem para e pelos outros, com o que resta da embarcação, pedaços de tabuas, botes salva-vidas, terão chances de chegar vivos na praia.  E aqui Forte fala da primeira das quatro dimensões de uma ética teológica necessária para o hoje da humanidade: nunca sem o outro. Não existe ética sem o reconhecimento do outro, na sua irredutível originalidade.  A segunda dimensão é reconhecer que no princípio de tudo, está o dom. Não existe ética sem a gratuidade, a começar pelo valor da própria vida humana.  Hoje se coloca preço em tudo, uma precificação da vida que lhe subtrai a dimensão de dom! A terceira dimensão é que não existe ética sem a prática da justiça.  Precisamos conjugar a ética com a prática da justiça e da solidariedade com os últimos da terra. É isto que faz com que na “aldeia global”, sejamos uns pelos outros, e não uns contra os outros. É, isto que proporciona as condições de navegabilidade do barco da humanidade.  E por fim, a quarta dimensão, a necessidade de uma ética da transcendência. Aqui emerge o rosto do outro como soberano. O amor pelos “últimos” da terra nos remeta ao “Amor último”. A ética da transcendência é a ética do amor e da esperança.

É esta visão e tábua de valores que pode servir como nosso GPS para guiar o barco da humanidade dando-lhe condições de navegabilidade para singrar os mares agitados da história do presente em direção ao futuro.  Não podemos deixar de nos alegrar com a inconteste liderança no cenário mundial que o Papa Francisco tem hoje, e ao nos chamar para cultivarmos a teimosia da esperança. Necessitamos urgentemente de uma ética da esperança. Lembramos de um dos pastores profetas de nossa terra que nos deixou recentemente, Dom Paulo Evaristo Arns. Ele tinha como lema pastoral de vida, para animar o povo e iluminar caminhos, caminhar sempre em frente “de esperança em esperança”!  Não deixemos, pois, que “nos roubem a esperança” (Papa Francisco).

Células tronco: uma boa notícia

Ana Paula Zanini é farmacêutica, Monitora de Pesquisa Clínica, membro do Instituto Bio10- Bioética & Desenvolvimento Social.

As modernas técnicas de Biologia Molecular e Genética permitiram um avanço extraordinário no estudo das células-tronco nas últimas décadas. As células-tronco são células indiferenciadas, auto renováveis e com potencial de diferenciação, que geram as células especializadas dos tecidos do organismo humano.
Essa capacidade de se transformar em diferentes tipos de tecidos, bem como de secreção de substâncias bioativas, desperta na comunidade científica, desde a década de 60, grande interesse por seu estudo, com vistas à aplicação nos serviços de atenção à saúde.
As pesquisas com células tronco adultas são legítimas; porém a pesquisa com células tronco embrionárias (ou seja, com embriões humanos) é eticamente reprovável. De fato, a obtenção das células tronco embrionárias acarreta a destruição de embriões provenientes de fertilizações “in vitro” ou de clonagem terapêutica, pontos polêmicos que precisam ser discutidos à luz do direito à vida. Adicionalmente, por conta do elevado potencial de diferenciação e de incompatibilidade com o receptor, o risco de formação de tumores e de rejeição é maior com células tronco embrionárias do que com células tronco adultas. A boa notícia é que as pesquisas com células tronco adultas se revelaram nos últimos anos muito mais promissoras. 
Segundo a base de dados do Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA, ClinicalTrials.gov, hoje em todo o mundo, há 6.186 estudos com células tronco em pacientes. A maioria desses estudos tem como foco a averiguação de segurança em pequenos grupos de pacientes, mas é interessante que em alguns desses estudos as células tronco adultas já revelaram eficácia terapêutica.
As células tronco adultas, que são encontradas em quase todo o corpo (medula óssea, cordão umbilical, tecido adiposo etc.) têm sido mais empregadas nos estudos, pois podem ser obtidas sem ferir a ética em pesquisa.  Ainda não existe nenhuma terapia com células tronco embrionárias aprovada por entidades regulatórias no mundo e os estudos em andamento são em sua maioria de lesão na medula espinal e em oftalmologia (degeneração macular).
No Brasil, na União Europeia e nos EUA, as terapias celulares aprovadas pelas agências regulatórias são os transplantes de células tronco da medula óssea e de algumas células tronco autólogas, especialmente em casos de doenças onco-hematológicas, onde o perfil de segurança e eficácia das células tronco adultas já foi devidamente elucidado. Em agosto deste ano, a agência norte americana, FDA, aprovou o primeiro tratamento de engenharia genética contra leucemia. Adicionalmente, a descoberta das células tronco pluripotentes induzidas, que mereceu o prêmio Nobel de Medicina em 2012, ampliou ainda mais a expectativa dos profissionais da saúde com novos tratamentos.  Assim, os portadores de doenças neurológicas, autoimunes, cardiovasculares, oftalmológicas, oncológicas entre tantas outras, esperam que as células tronco tragam a cura ou ao menos alívio de seus sofrimentos. Ainda assim, os pesquisadores são unânimes ao afirmar que mais estudos são necessários para o desenvolvimento e aprovação regulatória de novas terapias celulares. Felizmente, prevalece o êxito com as pesquisas em células tronco adultas ou as pluripotentes induzidas, em detrimento das pesquisas com células tronco embrionárias, eticamente reprováveis.

A Santa Sé e o Serviço ao Desenvolvimento Humano Integral

Padre Denilson Geraldo, SAC, é professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e membro da Cátedra André Franco Montoro de DIreito da Família da PUC-SP.

O Papa Francisco constituiu no Vaticano em 2016 o Dicastério (organismo) para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, com a missão de promover o desenvolvimento da pessoa à luz do Evangelho. Atuará nas áreas relacionadas com as migrações, os necessitados, os enfermos, as vítimas dos conflitos armados e desastres naturais, os encarcerados, os desempregados e os que sofrem qualquer forma de escravidão e de tortura. Também recolherá informações e resultados de pesquisa sobre a justiça e a paz, o desenvolvimento dos povos, a promoção e proteção da dignidade humana e dos direitos humanos; avaliará esses dados e informará às Conferências Episcopais suas conclusões, oferecendo material de estudo e apoio. Poderá estabelecer relações com associações, instituições e organizações não governamentais, mesmo fora da Igreja Católica, comprometidas com a promoção da justiça e da paz.
O nome do novo organismo tem a designação de Humanismo Integral. Essa expressão remonta a obra de J. Maritain (1882-1973), literato e filósofo francês convertido ao catolicismo. Para ele, o verdadeiro humanismo manifesta a grandeza criacional da pessoa, desenvolve suas forças internas e transforma a realidade humana em caminhos para a liberdade.
Na Encíclica Caritas in veritate (CV), Bento XVI considerou o humanismo integral nessa mesma direção, levando a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção da sociedade (CV 4), pois a Igreja quando anuncia, celebra e atua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do ser humano (CV 9). A vocação cristã a tal desenvolvimento compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, não sendo suficiente progredir apenas do ponto de vista econômico e tecnológico.
Afirma Francisco, na Laudato Si’ (LS), que as diretrizes para a solução de nossa crise socioambiental requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza (LS 139), em vista do bem comum que desempenha um papel central e unificador na ética social (LS 156). O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral (LS 157). Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e se manifesta naquilo que nos rodeia (LS 225). Uma ecologia integral é feita também de simples gestos cotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo (LS 230).
Chamemos de humanismo integral ou ecologia integral, o que importa é a visão que o Papa Francisco deseja manifestar com esse novo Dicastério. O cristão está sim na sociedade, não é separado, participa de tudo, vive tudo, envolve-se em todos os ambientes e não se coloca acima ou fora da realidade, mas vive intensamente o cotidiano. É melhor correr o risco de se sujar com a realidade do que viver distanciado dela. Quanto mais entramos nos dramas sociais, mais entenderemos que Deus se fez homem e veio nos trazer um humanismo ou uma ecologia integral.
Jornal "O São Paulo", edição 3169, 4 a 10 de outubro de 2017.

Sobre Queermuseu, mão abertas e punhos cerrados

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

Segundo o jornal O Globo, em sua edição de 27/09/2017, as reações contrárias à exposição Queermuseu, nas redes sociais, foram cerca de 17 vezes mais frequentes que as favoráveis. A notícia fala por si e dispensa comentários sobre quanto o respeito à família e aos símbolos religiosos é importante para os brasileiros.
Um comunicado dado pelo banco patrocinador a seus clientes, ainda segundo O Globo, dá uma justa explicação para o caso "quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana". A reação não é (ou não deveria ser) a uma arte que expressa e ajuda à reflexão sobre a condição homossexual, mas à ofensa legitimada como recurso para se chegar a essa expressão e essa reflexão.
Tal respeito aos símbolos religiosos transcende uma autodefesa de cristãos ofendidos. Em outro episódio recente, também era inaceitável a tese de que “a liberdade de expressão” permitiria aos chargistas da publicação francesa Charlie Hebdo ridicularizar a figura de Maomé e os símbolos religiosos caros ao islamismo (o que, evidentemente, não significa concordar com a chacina perpetrada em sua redação por extremistas muçulmanos).
Os que, naquele momento, defendiam essa suposta “liberdade de expressão” não percebiam que acompanhavam a mentalidade xenofóbica em alta na Europa, que eles próprios muitas vezes combatiam: de um modo ou de outro, afirmavam a superioridade de certo modo de pensar que não precisaria respeitar a sensibilidade dos demais.
Até que ponto uma obra de arte se vale de símbolos religiosos com o intuito de ofender? Num contexto polarizado, ser agressivo garante seguidores. Extremistas encontram públicos ansiosos por autoafirmação numa sociedade onde a comunicação é fácil e as pessoas lutam contra repressão, a massificação e a homogeneização. Assim, algumas obras acabam sendo feitas com um real intuito de ofender quem pensa diferente.
Outras vezes, contudo, o uso do símbolo religioso é, na verdade, a expressão de um desejo de afirmar que o bem, a beleza e a verdade expressas pelo símbolo também valem para o autor, apesar deste ser ou pensar diferente daqueles religiosos. Exemplo clássico é a “Crucificação branca”, de 1938. Nesse quadro, Marc Chagall – pintor de origem judaica – representou Cristo crucificado com o talit, xale usado pelos judeus na hora da prece. Com isso, queria mostrar que Jesus era um judeu martirizado por pregar o amor e assim conclamar cristãos e judeus a se unirem num momento de forte perseguição antissemita.
Como podemos distinguir essas duas situações e ter uma atitude adequada para cada caso? A análise da obra pode nos dar algumas indicações, mas sempre será falha, pois não sabemos o que se passa na mente do autor. O melhor é procurar estender a mão ao diferente, procurar o diálogo. Se a intenção do outro for boa, a mão estendida encontrará outra mão estendida e o abraço fraterno, apesar das diferenças e do choque inicial. Mas, se a intenção for ofensiva, a mão estendida encontrará um punho cerrado.
Não se constrói uma sociedade melhor com punhos fechados. Se deixados impunes ou incentivados, mais cedo ou mais tarde irão recriar violências e injustiças semelhantes às que quiseram combater. O punho cerrado deve ser adequadamente contido – para isso existem a lei e o direito. Não se pode responder a ele com outro punho fechado, sob o risco de aumentar o mal.
Jornal "O São Paulo", edição 3169, 4 a 10 de outubro de 2017.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Tarzan, Jane e Chita na guerra cultural

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Marcelo Musa Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila” para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella.


No ano de 1967, quando os hippies viviam seu apogeu na esquina das ruas Haight e Ashbury em São Francisco, Ronald Reagan, um dos mais importantes presidentes americanos do século XX, tomava posse como governador da Califórnia. Atribui-se a ele uma piada sobre os jovens desgrenhados e sarapintados que consumiam drogas, tocavam violão e faziam amor, não faziam a guerra. Nem nenhum tipo de trabalho produtivo. O hippie, dizia Reagan, era um sujeito que se parecia com o Tarzan, vestia-se como a Jane e fedia como a Chita.
Depois do verão de 67, os hippies declararam: “O sonho acabou”. Não é verdade. O sonho, ou a imaginação, como disseram os estudantes franceses de maio de 68, primos irmãos dos hippies - tomou o poder. A ideia de que o único objetivo da vida é a diversão - sexo sem filhos, drogas, bebidas, balada -; um conceito de cidadania que só inclui direitos e no qual gritar slogans na rua é toda a responsabilidade social que se está disposto a exercer; e a visão de que tudo o que a alma humana, retraduzida para o grego psique pela psicologia, psiquiatria e psicanálise, precisa é se sentir bem - para o que terapias, remédios ou técnicas orientais de meditação bastam - são filhos diretos dos hippies. O sonho não acabou, ele só virou o pesadelo em curso.
A piada acerta três elementos essenciais da contracultura que, desde os anos 1960, vêm dissolvendo a civilização ocidental por dentro. Desgrenhado, o hippie se parecia com o Tarzan por desprezar a distinção entre natureza e cultura. O comportamento irreverente - expressão que se usa há décadas como elogio - decorre da falta de respeito com tudo aquilo que, por não ser natural, é visto como desnecessário ou prejudicial à busca da satisfação.
Veste-se como Jane por não reconhecer a distinção entre homem e mulher. Não tanto para libertar a mulher de algum papel subserviente a que a civilização a teria relegado, mas para liberar todo tipo de ato sexual de qualquer limitação moral. A teoria de gênero que hoje acumula vitórias políticas é apenas o mais recente estágio da revolução sexual que a pílula, o avanço tecno-científico-industrial condenado pelo papa Paulo VI já em 1968, tornou possível.
Cheira como a Chita ao não reconhecer a distinção entre os seres humanos e os animais. A visão biológica segundo a qual o homem não é mais do que uma espécie de ser vivo entre milhares de outras geradas pela evolução vem se tornando a base até de outras ciências -psicologia, sociologia etc - como campo último de explicação do comportamento humano. Para as franjas mais radicais da militância ambientalista, pior do que apenas uma espécie animal, o homem é um peso excessivo sobre o meio ambiente. Uma espécie de câncer do qual a mãe-terra sofre.
Sem a violência dos linchamentos e até do canibalismo que marcou a Revolução Cultural chinesa, também ela fruto dos anos 1960, a contracultura ocidental realizou a destruição dos “Quatro Velhos” que Mao Tsé Tung odiava: velhos hábitos, velhos costumes, velhas ideias e velha cultura.
No Ocidente, a velha cultura que se quer destruir é aquela criada pelo cristianismo. Sessenta anos depois de declarada a guerra à cultura, livres da civilização cristã, da moral cristã e do estatuto especial do homem diante de Deus, Tarzan, Jane e Chita contemplam mesmerizados as telas de computadores celulares e tablets de onde esperam ver brotar, via internet, a Singularidade, a superinteligência coletiva e tecnológica que, caricaturando a antiga transcendência cristã, tornará o humano obsoleto. Não é por acaso que também a internet foi imaginada pela primeira vez por Stewart Brand, um hippie com o símbolo da paz pendurado no pescoço que guiava um ônibus colorido na Califórnia dos anos 1960.
Jornal "O São Paulo", edição 3168, 27 de setembro a 3 de outubro de 2017.

Enfrentando as desigualdades da saúde global (II)

Léo Pessini, doutor em Teologia Moral-Bioética e pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, pelo St. Luke`s Medical Center, em Milwaukee, nos EUA. Atualmente exerce a função de Superior Geral dos Camilianos, em Roma.

Como já vimos em artigo anterior, o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, em cooperação com a Confederação internacional de Instituições de saúde Católicas, estará realizando de 16-18 de novembro próximo a 32ª. Conferência Internacional abordando a temática das “Desigualdades na Saúde Global”.
O desafio que a humanidade tem pela frente em termos de superação de situações de enfermidades e morte é gigantesco.  Anualmente 303.000 mulheres  morrem por causa de complicações com a gravidez e parto; quase 6 milhões de crianças morrem antes da idade de 6 anos; 2 milhões de pessoas são infectadas com o HIV/AIDS e existem mais de 9.6 milhões de novos casos de tuberculose e 214 milhões de casos de malária; 1.7 bilhão de pessoas necessitam de tratamentos para as doenças tropicais negligenciadas; mais de 10 milhões de pessoas morrem antes da idade dos 70 anos por causa de doenças cardiovasculares e câncer; 800.000 pessoas cometem suicídio; mais de um milhão de pessoas morrem em consequência de acidentes no transito, nas cidades estradas; 4,3 milhões de pessoas morrem por causa de patologias ligadas com a poluição causados pelos combustíveis usados para cozinhar; 3 milhões de pessoas morrem por causa da poluição atmosférica.
Estes desafios não podem ser vencidos sem o enfrentamento dos fatores de risco que contribuem para o desenvolvimento destas situações patológicas: 1.1 bilhão de pessoas fumam produtos de tabaco; 156 milhões de crianças menores de 5 anos estão atrofiadas e 43 milhões de crianças com menos de 5 anos são obesas; 1.8 bilhão de pessoas ainda bebem agua contaminada e 946 milhões de pessoas não tem facilidades higiênicas em suas casas; 3.1 bilhão de pessoas utilizam combustíveis poluentes para cozinhar.  A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que “sistemas de saúde fracos, permanecem como um obstáculo em muitos países, resultando em deficiências na cobertura até mesmo para aos serviços de saúde mais básicos”.
Diante desse quadro, os objetivos deste importante evento internacional da Igreja Católica são assim articulados. “Informar para conhecer, conhecer par agir, agir para mudar, mudar para oferecer serviços de saúde que protejam o direito à vida de toda pessoa, com a perspectiva esperançosa de uma resposta global em rede, para enfrentar os desafios internacionais das desigualdades”.
Jornal "O São Paulo", edição 3168, 27 de setembro a 3 de outubro de 2017.

Liberdade, Princípio da não Contradição e as Terapias de Reorientação Sexual

A recente decisão que autorizou os psicólogos a oferecerem terapias de reversão sexual provocou revolta entre os militantes da LGBT e entidades, sendo classificada pelo Conselho Federal de Psicologia como “uma violação dos direitos humanos sem qualquer embasamento científico” e intromissão na atividade acadêmica do órgão, que promete recorrer da decisão, que a seu ver reforça o preconceito, ignorando a conquista científica e social que acarretaram os experimentos relativos à homossexualidade.
Entre outras reações midiáticas, destacaram ainda em reportagem no jornal “O Globo” hashtag que sublinhava: “ Não é preciso ser gay, lésbica ou bi, para lutar contra a homofobia. Basta ter um cérebro e uma boa dose de bom senso!”
A reportagem apresenta ainda um comentário de um deputado federal assumidamente homossexual sobre a decisão, afirmando que é “como se um juiz tentasse “derrogar” a lei da gravidade ou decidir que a Terra é plana (...)”.
Como professora de Filosofia do Direito e Antropologia Filosófica, gostaria de refletir sobre o tema a partir dos comentários glosados, à luz do princípio da não contradição, para concluir juridicamente.
Em primeiro lugar, podemos estudar as leis do universo – como, por exemplo a lei da gravidade – simplesmente porque existem e atuam regularmente. Do mesmo modo, a fisiologia humana é estudada pela biologia e sua essência pela antropologia filosófica, cujo objeto é o conhecimento do ser humano, tal como se apresenta. Nesse sentido, o corpo evidencia com clareza a completude da pessoa, bem como os traços anímicos que lhe acompanham. Se há um descompasso entre o natural e os “experimentos” – ainda que considero imprópria a aplicação do termo ao ser humano – é preciso averiguar, mesmo que em determinado momento histórico se verifique em larga escala, por uma crise moral ou principalmente pela miséria afetiva ocasionada pela substituição do amor pelo auto interesse. Por outro lado, quando a vontade moral se nega ao óbvio, cega a racionalidade, dando ensejo à irrazoabilidade. Daí o estranho apelo ao bom senso, quando a afirmação deveria ser invertida.
Paralelamente, a liberdade de não ser – uma perfeita questão shakespereana -só pode ser exercida nesse âmbito, impossibilitando-se o recurso a um tratamento ao qual se tem direito quando a força da natureza acarreta um conflito interior que solicita orientação para esgotar a própria verdade e encontrar a paz. Nesse sentido, a antropologia filosófica oferece também uma luz ao conceber a pessoa como única e respeitá-la em sua trajetória, buscando compreendê-la individualmente para potencializar sua felicidade e florescimento integral. De fato, uma crise de identidade pessoal, além de desconfortável, torna o ser humano inseguro e vulnerável, facilitando sua manipulação. Daí o interesse de tantos com relação à ideologia em questão, que, por sua vez, apoia-se em dados externos sem buscar as causas mais profundas, próprias de um verdadeiro trabalho científico.
Por outro lado, o Direito existe para proteger a vida, as pessoas e suas relações, tal como são, e, dessa forma, servir de alicerce para a edificação social, baseando-se no real e não no factual, ainda que alastrado ou alardeado. Visando, portanto, assegurar a ordem social a partir da liberdade constitutiva do ser humano e mais especificamente procurando oferecer a cada um o que lhe é devido através da justiça, nada mais sensato do que permitir a busca da própria ordenação interior àqueles que assim o desejem.
Por fim, aplicando a reflexão ao caso específico, pode-se concluir que a decisão do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho está em perfeita consonância com os princípios fundamentais que embasam nossa Constituição Federal, no que se refere à liberdade e à dignidade de cada pessoa humana. Como bem destacou a Folha de São Paulo (21/09/2017): “Ninguém deve, é evidente, impedir homossexuais de buscar apoio de psicólogos para lidar com práticas que, a seu juízo, lhe causem sofrimento. Nem muito menos, proibir profissionais de prover o aconselhamento que reputarem adequado para seu cliente”, ainda que não se entenda a homossexualidade como uma patologia. Outro modo de agir poderia sufocar tanto o profissional quanto o paciente em sua respectiva liberdade de atuação em busca do que lhe seja mais conveniente, o que também significa respeito.
Angela Vidal Gandra Martins