quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A dor do nascituro e os métodos abortivos


Ives Gandra aa Silva Martins é Professor Emérito da Universidade Mackenzie, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior de Guerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO/SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária – CEU.

Certa vez, assisti a um programa de televisão em que a obstetra, Dra. Marli Virgínia Lins e Nóbrega, ao falar do sofrimento do feto ou do bebê já formado, durante o abortamento, lembrou que, em alguns países, já se estuda a possibilidade de anestesiá-los, antes da prática do ato, para que não sofram tanto, quando lhes for tirada a vida.
No referido programa da Tribuna Independente, da Rede Vida, os pais de uma criança anencéfala - que não optaram pela antecipação da morte de seu filho, e sim por deixá-lo nascer e viver algumas horas - depuseram relatando que acompanharam, por ultrassom, o desenvolvimento da criança no ventre materno, e que seus gestos demonstravam, nos primeiros meses de vida, ao passar as mãozinhas pela cabeça, que sentia a perda gradativa ou a má formação de seu cérebro.
Bernard Nathanson, em seu livro “The hand of God”, arrola as técnicas utilizadas para tirar a vida de seres humanos no ventre materno. Como médico, ele próprio dirigiu pessoalmente por volta de 75.000 abortos, nos Estados Unidos. Chegou a provocar o aborto de um filho seu, concebido em relação que mantivera com aluna do 5º ano da Faculdade de Medicina. Começou a repensar o assunto em 1974, quando percebeu que era um homicida de crianças, arrependeu-se e passou a ser, então, um defensor da vida.
No oitavo capítulo de seu livro, refere-se, entre os métodos abortivos, ao sistema de aspiração, introduzido por Bykov, em 1927, e difundido no mundo inteiro, como forma de extermínio em massa de nascituros.
Conta, inclusive, um episódio que acompanhou, por ultrassom, de aplicação do método da aspiração (sugar o feto), por uma equipe médica americana. No momento em que o aspirador foi introduzido no útero materno, o feto procurou desviar-se e seus batimentos cardíacos quase dobraram, quando o aparelho o encontrou. Assim que seus membros foram arrancados, sua boca abriu-se, o que deu origem ao título de um outro estudo seu: “O grito silencioso”.
No método de corte, utilizado nas décadas de sessenta e setenta para interromper a gravidez no início da gestação, um raspador é introduzido para separar o feto e cortá-lo em pedaços, provocando grande hemorragia na mãe. O médico tem que ter o cuidado de verificar se nenhuma parte do nascituro fica no ventre materno, para não provocar uma infecção.
No método da injeção com substância salina, injeta-se o veneno no feto  quase sempre com mais de 18 semanas, e este leva mais de uma hora para morrer, expelindo a mãe um filho morto por envenenamento, em torno de 24 horas depois.
Nos abortos em que a criança já tem cerca de 1 Kg, o método aconselhado é a cesariana, e depois – como ocorre nos abortários americanos—  deixa-se a criança morrer, numa lata de lixo, apesar de ter nascido viva.
Já menos usado é o processo de queimar o nascituro, como se fosse atingido por uma bomba de “napalm”.
Nenhum método elimina a dor do feto ou do bebê, razão pela qual, como relatou a Dra. Marli, nos países que permitem o aborto, já se fala em anestesiar os nascituros antes de dar execução à morte programada. Em muitos deles há um forte movimento para eliminar a lei permissiva.
Falar, portanto, em aborto de forma “neutra”, sem examinar a dor infligida ao nascituro, é querer, como a avestruz, ignorar a realidade, ou seja, que o aborto é uma forma de pena de morte, com a utilização de métodos sangrentos e desumanos. Tais métodos são até mais violentos que os empregados para a execução de seres humanos já nascidos, como, por exemplo, o fuzilamento, em que o condenado morre de imediato, ao passo que o sofrimento do nascituro, até morrer, é muito maior.
No caso dos anencéfalos, em que a autorização para a realização do aborto – segundo decisão do meu caríssimo amigo e brilhante jurista, Ministro Marco Aurélio de Mello - pode ser dada até o último dia da gravidez, está-se perante a seguinte absurda situação: matar a criança no ventre materno, em momento anterior ao parto, é permitido, não sendo tal ato de eliminação da vida considerado crime. Já matar o anencéfalo um minuto depois do nascimento, é proibido e o ato é considerado criminoso...
Nos casos de aborto legal – para mim a lei penal não foi recepcionada pela Constituição de 1988, que garantiu o direito à vida sem exceções -, a interrupção da gravidez, teoricamente, pode ser realizada a qualquer momento, durante os nove meses de gestação, dependendo, exclusivamente, da decisão da mãe. O que vale dizer, a mãe está, inclusive, autorizada a realizar uma cesariana e a jogar o indesejado bebê no lixo, para ali morrer abandonado, tal como ocorre nos abortários americanos.
Um último aspecto é de se realçar. A anencefalia pode ser parcial ou total, de tal maneira que, mesmo com os mais modernos equipamentos não é possível garantir 100% de precisão diagnóstica o que, de resto, acontece em todos os exames que dependem da habilidade do profissional que os realiza e elabora o laudo médico. Segundo o depoimento de uma aluna minha, em seu caso, foi diagnosticada a anencefalia, e esse diagnóstico, felizmente, estava errado.
Trago o assunto, novamente, à discussão, para que a sociedade reflita se, entre as grandes conquistas da civilização moderna, está a permissão para transformar o ser humano em lixo hospitalar.

Irmãos: vamos operar na prática contra a violência!

Eduardo Dias de Souza e Wagner Balera.

No texto que baseia a Campanha da Fraternidade de 2018, está dito: “Quem luta pela justiça e pela paz acaba por incomodar quem tira proveito da injustiça através da violência”. Podemos começar a nos perguntar como as famílias, os grupos intermediários e as associações, sempre tendo como suporte o princípio da subsidiariedade, podem cooperar com a formulação das políticas públicas de superação da violência injusta que se acha tão em voga na hora que passa.
Em primeiro lugar incumbe à comunidade estabelecer que a segurança pública é e deve se projetada para estar a serviço da comunidade humana, isto é, da cidadania.
Portanto, a segurança existe para garantir o ir e vir das pessoas sem constrangimentos e ameaças, e que esse ir e vir construa a convivência indispensável a um Estado que se quer de Direito.
Essa segurança há de compreender não só medidas de prevenção que, naturalmente, exigem justiça social e igualdade de oportunidades na conquista e manutenção dos bens deste mundo como, sobretudo, o controle das atividades de pessoas e grupos que atuam e se posicionam deliberadamente de modo violento.
Pode ser que o caminho da superação da violência, com inclusão social, deva partir do registro preliminar dos lugares de vulnerabilidade nos quais (será coincidência?) está alocada a camada mais desamparada da população. São os pobres as principais vitimas da violência e sobre eles, igualmente, recai com todo o potencial a violência do aparelho do Estado.
A desigualdade no Brasil historicamente marcado pela longa escravidão e uma sociedade partida, como se um lado não se preocupasse cotidianamente com a sorte do outro lado. Esse germe da indiferença permite que passivamente grupos tolerem roubar, apenas pessoas de outros grupos. Assim como ano a ano as cenas medievais nos cárceres se repitam sem que nada de concreto seja alterado. Temos a terceira maior população carcerária do mundo (aproximadamente 726 mil).
É necessário, e mesmo imprescindível, que a comunidade seja chamada a discutir, conjuntamente com o Estado e segundo as dimensões da subsidiariedade, sobre as políticas de segurança pública. Aliás, o Plano Nacional de Direitos Humanos recomenda, expressamente, a criação dos conselhos comunitários de segurança pública.
Essa primeira perspectiva se situa na etapa do ver, segundo o clássico esquema de São João XXIII. Vamos ver o que é violento e como se pode conter ou mesmo eliminar a violência mediante adequadas medidas de prevenção.
A segunda perspectiva é a do combate à violência, e nessa medida já se sabe que as estruturas clássicas do Direito falharam. A simples ameaça de cadeia, tão reclamada por certa mídia, não tira ninguém dos caminhos da criminalidade. E as cadeias se transformaram em locais de brutais violações de direitos humanos sobre serem, como igualmente se sabe, verdadeiras escolas avançadas de criminalidade.
As Pastorais Sociais que têm como objetivo a presença de serviço na sociedade são importantes nesse processo de revelar e alterar esses muros sociais. E no Estado de São Paulo já existem os Conselhos de Segurança (CONSEGs), um para cada distrito policial e respectiva Companhia da Polícia Militar, além da ouvidoria das polícias cujo titular é escolhido pelo Conselho Estadual de Diretos Humanos (CONDEPE). Assim, importante é ocupar esses espaços! Enfim, em qual CONSEG atuará minha comunidade. Interessa saber dias de reuniões e temas debatidos. O que as pastorais sociais desejam das polícias públicas, em especial de segurança, é de ser debatido nesses espaços..
É necessário, pois, que sem a apressada reformulação do aparelho repressor (cadeia) o mesmo seja transformado por dentro, garantindo-se que esses espaços permitam a criação e o fomento de uma cultura de paz e de não violência porque, como também afirma o Texto-base: “ a violência nunca constitui uma resposta justa”. E a única resposta que a sociedade atual apresenta contra a violência é o encarceramento, sem correspondente política penal e penitenciária que carregue consigo as missões elementares e transformadoras que o Estado e a sociedade, informados por uma cultura de paz e de justiça deve lançar em todas as direções. Agir, no caso, é agir para incrementar o bem, não apenas a punição. Reabilitar aqueles que caíram, mas que podem voltar ao convívio social se lhes for dada a oportunidade.
Em suma: ver quem são os mais atingidos pela violência; julgar os violentos com justiça e caridade, agir com a resposta justa, capaz de buscar e obter a conversão do violento em agente da paz.
Jornal "O São Paulo", edição 3186, 14 a 20 de fevereiro de 2018.

Memento moris

Arte: Sergio Ricciuto Conte

Magna Celi Mendes da Rocha é Doutora e Mestre em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP; Assessora da Pastoral Universitária (PUC-SP), Coordenadora Pedagógica do Curso de Extensão em Ensino Religioso (PUC-SP) e Consagrada da Comunidade Católica Shalom.

A felicidade e a liberdade interior com as quais desejamos viver podem estar muito mais relacionadas com a forma como lidamos com a morte do que imaginamos. Perder um ente querido, vivenciar uma enfermidade grave ou acompanhar alguém em seus momentos finais, colocam-nos em contato com uma realidade com a qual comumente vivemos alheios, quase sempre intencionalmente: a finitude humana.
A sabedoria monástica ensina que a grande sacada para viver bem a vida é manter a morte diante dos olhos. Anselm Grün (1998), em seu mais conhecido livro, “O céu começa em você”, diz que São Bento, em sua regra, aconselha os monges a manterem a morte diariamente diante dos olhos pois, para ele, o pensar na morte liberta-os de todo medo “porque paramos de depender do mundo, de nossa saúde, de nossa vida. O pensar na morte também nos possibilita viver e experimentar, conscientemente, cada momento como dádiva e saboreá-la dia a dia” (p. 109). Por ter sempre a morte diante dos olhos, o monge torna-se livre das preocupações mundanas, do julgamento e das expectativas dos homens. A grande expectativa para a qual deve voltar-se é para a vinda do Senhor, ou sua parusia: “A serenidade jovial, a liberdade, a confiança e a sinceridade para o momento presente forjam o monge que anseia pelo Senhor” (p.110).
Grün prossegue dizendo que em muitas sentenças monásticas recomenda-se que é necessário primeiro morrer para o mundo, a fim de estar à altura das tarefas que o mundo apresenta, pois quando nos identificamos muito com uma tarefa ou fazemos que nossa autoestima dependa de ser ou não capaz de realizá-la, não podermos realizá-la livremente, pois a fixação em uma tarefa, bloqueia nossa capacidade de execução. “Morrer significa abandonar a identificação com a tarefa. Somente então, eu me torno livre para realizá-la bem. Pois já não depende tudo do fato de como eu a executo”. (p.111)
A identificação e a lembrança da própria morte querem lembrar também que o ser humano torna-se tanto mais livre quanto mais deixar de depender da aprovação dos outros, uma vez que se constantemente depender do elogio dos outros continuará sempre insatisfeito, pois nesse aspecto, o ser humano é insaciável. “O que devemos experimentar é que em nós há uma dignidade divina, cuja existência independe de as pessoas nos elogiarem ou nos repreenderem. Somente a experiência dessa dignidade divina em nós nos torna livres diante do elogio e da repreensão” (p. 113).
Daí, concluímos que não é suficiente apenas se lembrar da própria morte, mas estabelecer uma relação filial e confiante com o Autor da Vida. Nessa vivência íntima e concreta, abrem-se as portas para tocar o infinito e acolher a verdadeira dignidade humana, que consiste em ser filho de Deus.
 A simples constatação da própria finitude facilmente pode lançar-nos numa experiência de desespero ou fuga, pois morrer, quer no sentido literal ou existencial, significa desprender-se, e só aceitamos desprender-nos de algo por um sentido maior. Em uma relação com o Ser Infinito, esse movimento de desprendimento vai se aprimorando cada vez mais, em um processo de amadurecimento humano e espiritual. Tal desprendimento vai pouco a pouco tornando-se uma vivência consciente e intencional: de pessoas, de coisas, das visões de mundo e até mesmo da própria vida, pois: “Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (Jo, 12, 24-25).
Na aparente dureza dessas palavras reside o segredo da felicidade e da verdadeira liberdade: perder para ganhar. Estar livre dos medos, das posses, das expectativas humanas. Esse, no fundo, é um desejo autenticamente humano. Ajuda-nos a superar a própria estreiteza e a lançar o olhar para o infinito, pois como afirmava São Paulo: “se é só para esta vida que temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima” (1 Cor 15,19).
Dessa forma, iniciar o novo ano mantendo a morte diante dos olhos pode ser um bom caminho para quem deseja vivê-lo autenticamente.
Jornal "O São Paulo", edição 3186, 14 a 20 de fevereiro de 2018.

A ação do leigo – por um leigo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Luís Henrique Piovezan estudante de Teologia pelo Claretiano e engenheiro civil, ministro extraordinário da Sagrada Comunhão na Paróquia de Santa Joana d'Arc.

Desde o Concílio Vaticano II, o leigo cresce em destaque na Igreja. Como diz o Decreto Apostolicam Actuositatem, de Paulo VI (1965): “os nossos tempos, porém, não exigem um menor zelo dos leigos; mais ainda, as condições atuais exigem deles absolutamente um apostolado cada vez mais intenso e mais universal” (AA,1).
Por outro lado, ainda há alguma confusão no termo leigo, que os torna passivos. Até meados do século XVIII, o povo era constituído de pessoas sem conhecimento formal. Poucos sabiam ler. Por isso, com o tempo, associou-se o termo leigo às pessoas sem conhecimento. Tanto foi associado, que este significado do termo saiu da esfera eclesial e se expandiu para todas as áreas profissionais. Quem não entende ou não tem educação formal em um assunto é, atualmente, chamado de leigo.
Em grego, o sentido original da palavra leigo é a pessoa do povo. Assim, o leigo não é aquele que não sabe ou deve ser tutorado, mas aquele que é parte do povo, que dele vive e participa. O Ano do Laicato é o ano da ampliação da participação do povo na Igreja. É o ano de se pensar em uma participação maior do leigo não só na Igreja como no mundo.
Esta participação, porém, não pode ser apenas uma imitação dos clérigos. Tendência natural é achar que a participação do leigo seja apenas a atuação dentro de uma paróquia ou a consagração da vida a Deus, abandonando a vida material e mundana. Pelo contrário, Paulo já alertava para um espiritualismo excessivo (cf. 2Ts 3,10). A vida espiritual deve ser paralela a uma vida material. Não uma vida de materialismo, mas uma vida material que se paute pela mensagem, pela espiritualidade e pelo exemplo.
Jesus não envia apenas Doze Apóstolos para pregar, mas dá a missão a setenta e dois discípulos (cf. Lc 10,1-20). São “outros discípulos”. São seis pessoas para cada tribo, para cada Apóstolo. Com cada Apóstolo, formam uma equipe de sete pessoas, o número da perfeição. É sinal que a pregação e a ação para o bem não são responsabilidade apenas dos Apóstolos, mas de todos os que creem.
Assim, o leigo deve ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-16). O leigo é para o mundo, principalmente como exemplo (1Pe 2,12). Ele é luz! Desta forma, o leigo não deve se preocupar em buscar um cargo na paróquia, na pastoral ou seguir um grupo de consagrados. Deixa de ser leigo para começar a ser clérigo, imitando sua vida. Ele pode até agir numa pastoral, mas seu papel se traduz na vida cotidiana, em seu trabalho, em sua cidade e em sua família. Enfim, luz para o mundo.
Nesta visão mais ampla do leigo, ele não pode se isolar dentro de uma paróquia ou de um grupo religioso. Não deve deixar o mundo para focar-se apenas na contemplação de Deus. Como o bom samaritano (cf. Lc 10,25-37), deve procurar ajudar os que estão feridos na estrada. Deve deixar as preocupações com pureza sacramental para socorrer o necessitado que surge em seu caminho.
É claro que as paróquias precisam de pessoas que ajudem e a Igreja também necessita de pessoas consagradas. Mas também precisa de leigos com conhecimento para que possam realizar sua missão no mundo (DAp 210). Isto cria um desafio para o clero e para os leigos: a formação dos leigos (DAp 211). Esta formação não pode ser apenas a apresentação da doutrina, numa mão única do clero para o leigo, como se o clero devesse ser o detentor do conhecimento doutrinal. A formação do leigo começa pelo diálogo.
Jornal "O São Paulo", edição 3185, 7 a 13 de fevereiro de 2018.

Modelos econômicos e a concepção negativa do ser humano


Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário FEI.

No passado, mas também no presente, muitos países atribuíram um papel importante ao Estado, tanto no campo social como no econômico, seguindo um paradigma de conflito, no qual as atividades particulares são opostas aos interesses públicos, marginalizando as iniciativas da sociedade civil com base na desconfiança e suspeita.
Esses sentimentos são, por sua vez, consequência de uma concepção negativa do ser humano. Afinal, um papel importante demais atribuído ao Estado tende a amortecer a capacidade humana e a frear as contribuições positivas que indivíduos isolados podem dar para o progresso, para a justiça e para o bem comum. De acordo com Thomas Hobbes, essa concepção negativa torna necessário delinear um contrato social a fim de contra-atacar os relacionamentos belicistas entre um homem e outro no “estado da natureza”; essa antropologia negativa é também a base de certas ideias do Estado de bem-estar social. Porém, a globalização erodiu gradativamente a viabilidade de alcançar uma sociedade por meio do Leviatã. O nível de complexidade social é alto demais, e não pode ser reduzido eficazmente pela coerção de seus membros em qualquer situação que seja.
As tentativas obstinadas de seguir um modelo ultrapassado de bem-estar social colocam em risco conquistas mais significativas e mais preciosas, principalmente aquelas que se referem justamente ao conceito de bem-estar: a universalidade, o respeito pelo indivíduo e a igualdade de tratamento em termos de padrões mínimos garantidos, qualidade e quantidade de serviço. Em um sistema que não recompensa o livre arbítrio e a responsabilidade dos usuários, as pessoas com baixa renda e nível educacional inferior são menos capazes de aproveitar os serviços de maneira adequada, enquanto as pessoas com alta renda e um nível educacional superior encontram menos dificuldades para descobrir maneiras de superar o rigor e a uniformidade do sistema.
Ainda que aparentemente contrário à lógica hobbesiana, o liberalismo neoclássico vê as funções da sociedade civil à luz da mesma antropologia negativa. Essa perspectiva se baseia no pressuposto de um indivíduo puramente egoísta que responde exclusivamente às motivações econômicas, seja ao desempenhar uma tarefa designada por um superior ou ao conduzir um projeto particular. Essa abordagem não considera a possibilidade de uma aspiração ou de um critério baseado em ideais nem a oportunidade de se estabelecer associações capazes de contribuir de maneira positiva para o bem comum, além dos interesses particulares de um grupo específico de pessoas.
O bem-estar social e o liberalismo neoclássico diferem em relação ao mecanismo mais indicado para corrigir o mal causado pelo comportamento humano. O Estado de bem-estar associa esse mecanismo à ação do poder central. O liberalismo, por sua vez, o identifica no mercado, onde os esforços individuais com interesses particulares são coordenados pela “mão invisível” em direção a um resultado eficiente, mas não necessariamente igualitário - uma das dimensões típicas dessa visão de mundo é o conceito darwiniano de sociedade, caracterizado pela sobrevivência do mais apto.
Tanto a concepção estadista como a liberal sobre o Estado e o mercado só podem ser desafiadas eficazmente começando-se a entender os seres humanos. A Doutrina Social da Igreja nos indica um caminho, ao qual dediquei o artigo “Antropologia positiva: berço da sociabilidade
 Jornal "O São Paulo", edição 3185, 7 a 13 de fevereiro de 2018.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Tempo favorável

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke é membro do Movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova e articulista da revista Cidade Nova.

O Ano do Laicato, proclamado pela CNBB, pode vir a ser para os cristãos leigos um tempo favorável nos tempos que vivemos.
Chamados a ser sal da terra e luz justamente nesse mundo mergulhado na “noite” da mudança de época, aquele da pós-modernidade, da pós-humanidade, do pós-capitalismo, do pós-cristianismo, da pós-verdade…, eles podem oferecer a concepção do ser humano como pessoa em relação – consigo mesma, com seu semelhante, com Deus, com a natureza e com as coisas -, em muito diferente do hiperindivíduo, do homo œconomicus ou do homo consumans. Podem igualmente oferecer uma concepção das relações humanas como dádiva, possibilitando a superação das relações como dominação e exclusão.
Tais concepções, enraizadas no Evangelho e desdobradas no riquíssimo patrimônio do Magistério da Igreja, requerem uma mediação, uma atualização e uma aplicação no pensamento e na prática política, econômica, social, educacional, artística, cultural, comunicacional… Enfim, nos inúmeros “areópagos modernos”, como apontam nossos Pastores no documento nº 105 sobre o laicato, de imprescindível leitura.
Essa operação não está dada de uma vez por todas. Requer, antes de tudo, mística e sabedoria, e depois, estudo, elaboração, crítica, ação. Uma das maneiras de isso ser dar é mediante o diálogo. Numa “direção” “interna” e noutra “externa” (verso e reverso de uma mesma atitude).
“Internamente”, entre os cristãos – em sua diversidade de carismas, espiritualidades, sensibilidades, linhas de pensamento - no exercício do discernimento dos “sinais dos tempos” e de como aplicar os princípios cristãos na realidade atual, caracterizada pela complexidade. Tal atitude dialógica possui um enorme potencial de testemunho daquele amor mútuo que caracteriza os discípulos de Jesus (cf. Jo 13,35) e de ser “espaço” para Deus realizar aquela unidade “a fim que o mundo creia” (cf. Jo 17,21).
“Externamente”, com a sociedade contemporânea, em sua profusão de referenciais teóricos e narrativas. Expressão da Igreja em saída, tal diálogo requer a consciência de não sermos os possuidores da verdade (pois é a Verdade que nos possui) e, assim, colocarmo-nos com os outros na descoberta dela, verdade que não é relativa, mas relacional, ou seja, compreendida na relação, inclusive com quem não partilha de nossos princípios.
O diálogo postula algumas posturas norteadas pelo amor. Antes de tudo, o reconhecimento da dignidade e do valor do outro, dando um voto de confiança em sua boa-fé, ainda que seu pensamento e suas atitudes nos deixem perplexos, com a certeza de que todos têm algo a doar, possuem, de alguma forma, “sementes do Verbo” a serem comunicadas.
Uma segunda atitude é escutar o outro sem filtros de esquemas pré-concebidos (muito menos demonizando-o a priori), buscando compreender seu ponto de vista com abertura, profundidade e sinceridade.
Uma terceira atitude é, então, apresentar a própria razão, de maneira embasada e competente, mas com humildade, como quem oferece um presente, sem querer persuadir. Trata-se do “respeitoso anúncio” (João Paulo II).
Uma quarta atitude é ter um pensamento incompleto (Francisco), que se traduz no encanto de aprender do outro e com o outro algo de novo, de se deixar surpreender com as novas verdades compreendidas.
Se a noite de nosso tempo nos faz temer e talvez nos fechar nas barricadas de nossas certezas, quem sabe a saída para o diálogo não contribua para antecipar a madrugada daquele tempo novo anunciado por Jesus…
Jornal "O São Paulo", edição 3184, 31 de janeiro a 6 de fevereiro de 2018.

O anúncio do Evangelho e o Sínodo Arquidiocesano

Francisco Catão

A Exortação Apostólica Alegria do Evangelho (24.11.2013), que promulga o Sínodo sobre a Nova Evangelização (2012), tem grande importância porque traça as linhas diretoras do pontificado do papa Francisco, que então se iniciava, numa perspectiva de reforma da Igreja esboçada pelo Vaticano II e que se tem efetivado na Igreja, nesses últimos cinco anos.
Primeiro grande documento do papa Francisco, a Alegria do Evangelho comporta cinco capítulos que certamente serão levados em consideração pelo Sínodo Arquidiocesano, em processo em São Paulo.
Começa estabelecendo o objetivo: a transformação missionária da Igreja, no caso do Sínodo, a igreja em São Paulo. Examina seguida a crise que atravessamos nos dias de hoje, do ponto de vista da fé e aponta o caminho de superação, que é o anúncio do Evangelho, fundado na fé e se estendendo a toda sociedade, mesmo secularizada. Conclui finalmente, que a transformação missionária da Igreja no mundo, como em São Paulo, é obra do Espírito e requer evangelizadores com Espírito.
Para perceber todo alcance do ensinamento oficial, o caminho mais fácil é assimilar em profundidade os fundamentos do capítulo sobre o anúncio do Evangelho:
Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho. A salvação, que Deus nos oferece é obra da sua misericórdia. Esta salvação é para todos, pois Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo de elite, mas: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28, 19)
Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça da fé, e fê-la florir na sua vida diária, transmitindo-a segundo as próprias modalidades culturais. Bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja: o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade.
Todos somos discípulos missionários. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus. Seu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele, pois crer, que descobriu como cristão, é o que o ajuda a viver e lhe dá esperança, e é isso que deve comunicar aos outros (Alegria do Evang., 111-121)
Na base, pois, de uma Igreja “em saída”, missionária, voltada, como Jesus para a salvação de todo o povo, está a experiência pessoal de Deus de todo cristão, no conjunto da Igreja.
A ação evangelizadora é fruto da experiência de Deus no Espírito de Jesus, alma do exercício de todos os dons hierárquicos e carismáticos, conferidos pelo Espírito à Igreja, que, por sua vez, inculturada, é princípio instrumental de graça, com absoluto primado sobre todas as capacidades humanas ou funções exercidas por ministros, ordenados ou não, no seio da comunidade cristã.
Essa visão atualizada do Mistério representa sem dúvida, uma profunda “mudança de forma da Igreja”, uma “reforma”, como se observa nas várias medidas que vêm sendo adotadas pelo papa Francisco.
Os caminhos para a realização dessa “reforma” no conjunto das instituições eclesiais de S. Paulo, estão sendo estudados pelo Sínodo Arquidiocesano.
Chama-nos atenção sua novidade, apontada pelo Espírito no documento pontifício de 2014, que o Sínodo certamente levará em consideração, para que nos tornemos uma Igreja “em saída”, missionária, voltada, como Jesus para a salvação de todo o povo.
Jornal "O São Paulo", edição 3184, 31 de janeiro a 6 de fevereiro de 2018.

Uma ameaça secular

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Marcelo Musa Cavallari

No livro Uma Era Secular, o filósofo Charles Taylor identifica três sentidos da palavra “secular”. O primeiro é o mais comum de separação entre Igreja e Estado consagrado na maioria dos ordenamentos jurídicos em vigor. O segundo é aquele que contempla o fato de que a frequência às igrejas e seus ritos é, hoje, largamente minoritário. O catolicismo pode conviver com ambos, ainda que não sem danos. A invenção do casamento civil, por exemplo, tirou a união entre o homem e a mulher do lugar em que havia sido posta pelo livro do Gênesis e a entregou aos cartórios. Foi só o primeiro passo para o desastre a que se assiste hoje. Os católicos, porém, continuamos a acreditar que o casamento é a união indissolúvel entre um homem e uma mulher. Quanto ao segundo sentido, a validade dos sacramentos não depende de quórum. Não importa quanta gente vá à celebração da eucaristia para que a presença real de Jesus no mundo continue.
Há, porém, um terceiro sentido de “secular”. “Esse se concentraria nas condições de crença, ” escreve Taylor. “A mudança para a secularidade nesse sentido consiste, entre outras coisas, num movimento de uma sociedade em que a crença em Deus não era desafiada e, de fato, não era problemática, para uma em que essa crença é uma opção entre outras. ” Taylor prossegue: “Posso achar inconcebível abandonar minha fé, mas há outras pessoas cujo modo de vida não posso desprezar como depravado, ou cego ou indigno, que não têm fé (ao menos não em Deus, ou no transcendente). A crença em Deus não é mais axiomática. Há alternativas. ”
Essa mudança ameaça o catolicismo por dentro. Quando a crença em Deus passa a ser uma alternativa entre tantas disponíveis aos membros da comunidade que habitamos, é porque essa crença passou a integrar um conjunto logicamente superior que abarca essas alternativas. Se a crença em Deus não é mais axiomática, isto é, se ela não serve mais de fundamento para tudo o que se pensa. Algo tem que ocupar o posto de fundamento para explicar tudo, inclusive, a partir de agora, a crença em Deus. Esse conjunto secular de alternativas de que faz parte a crença em Deus é, para a cultura dominante hoje, o das várias dimensões do ser humano. A crença em Deus seria uma das manifestações possíveis de uma dimensão, digamos, espiritual.
Dessa forma, é possível alguém ser católico e acreditar firmemente que sua alternativa é a melhor ou mesmo a única correta, evitando, assim, o relativismo denunciado pelo papa Bento XVI. Ainda assim, esse católico poderá estar na condição de achar que a sua é a única alternativa correta, mas é uma alternativa, isto é, algo intrinsecamente humano, medido, portanto, pelos mesmos critérios que as demais dimensões da vida humana. Uma vida plena seria aquela vivida numa sociedade justa e honesta, mantida por um trabalho útil, bem-remunerado e satisfatório, com saúde e equilíbrio em todos os papeis a que se é chamado, com a crença em Deus coroando tudo isso.  Ter-se-á perdido de vista, nessa situação, quanto dista da vida neste mundo, por mais perfeita que ela seja, aquilo que a confiança em Deus acarreta. Essa secularização da alternativa cristã tornou opaca a transcendência, única aposta que importa. É quase inadmissível, para um tipo de catolicismo que vai se tornando cada vez mais dominante, a fala de São Paulo, para quem “o viver é Cristo e o morrer é lucro. ” Escrita há quase dois mil anos em sua epístola aos Filipenses, a ideia ainda ecoava nos versos de Santa Teresa de Ávila, no início da Idade Moderna: “Vivo sem viver em mim/e tão alta vida espero/que morro porque não morro. ”
Jornal "O São Paulo", edição 3183, 24 a 30 de janeiro de 2018.

A revelação do homem a si mesmo e a cultura atual

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

“Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente... Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe sua vocação sublime” ( Gaudium et Spes , 22). Essa afirmação tem um alcance enorme no diálogo entre a comunidade cristã e a cultura contemporânea. 
A Doutrina Social da Igreja se baseia no que o magistério chama de “lei natural”, que nada mais é do que o reconhecimento da natureza humana em sua integralidade e profundidade. Por nossa natureza, existem coisas que nos fazem bem e coisas que nos fazem mal, tanto em nosso íntimo (e daí decorrem os princípios da moral privada) quanto na organização da sociedade (de onde decorrem os princípios da organização da sociedade com vistas ao bem comum). 
Assim, essas reflexões da Igreja – sejam elas sociopolíticas ou ligadas à ética privada, às relações afetivas e à sexualidade – não são confessionais, isso é, não são válidas apenas para os que compartilham a fé católica, mas para todos os seres humanos. Por exemplo, a dignidade absoluta da pessoa humana, tal como defendida pela Doutrina Social da Igreja, é um dado reconhecível por todos os seres humanos, independentemente de suas crenças religiosas, enquanto a presença misteriosa de Cristo no sacramento da Eucaristia é um dado de fé, que não é evidente para quem não é católico. 
Em questões de ordem moral ou social, a força do diálogo dos católicos com o mundo laico depende, portanto, do quanto deixamos que a revelação da natureza humana, realizada por Cristo, nos auxilie a compreender e acolher os problemas das pessoas concretas e ajudá-las a superar esses problemas. Não se trata de posições ideológicas mais ou menos certas, mas de uma inteligência iluminada pela descoberta do amor infinito de Deus por cada um de nós.
Por outro lado, também temos que reconhecer que não chegamos às posições que temos porque somos mais inteligentes ou sábios que os demais. Basta olharmos em volta, para nossos amigos e parentes, e nos perguntarmos: se não tivéssemos conhecido a Cristo, como agiríamos e nos posicionaríamos, em termos afetivos, morais, sociais e políticos? A maioria de nós, provavelmente, agiria de forma bem diferente da que age, pois seguiríamos a mentalidade dominante e os lugares comuns de nossa cultura. 
É o encontro com Cristo que nos faz diferentes, no agir e no pensar. A realidade é sempre desafiadora e incomoda, e precisamos sentir a segurança de um amor gratuito para podermos compreender, sem ideologias ou preconceitos, a nós e ao mundo. 
Por isso, no diálogo com a cultura de nosso tempo, temos que considerar que não queremos defender a “nossa posição”, mas a verdade que faz bem a todos; reconhecermos que não são nossos argumentos – por mais justos que sejam –, mas a força do amor que ajudará nossos irmãos a compreenderem essa verdade. 
Jornal "O São Paulo", edição 3183, 24 a 30 de janeiro de 2018.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Assédio sexual, dignidade e dom de si: do #MeToo a São João Paulo II

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Em 2017, um furacão se abateu sobre os meios cinematográficos norte-americanos, com uma série de denúncias de assédio sexual e até estupros sofridos por atrizes famosas, culminado na criação da hashtag #MeToo e do movimento Time’s Up.
No início de 2018, um grupo de personalidades femininas francesas publicou um manifesto indo, de certa forma, no sentido contrário: reconhecem a necessidade de combater o estupro e a violência sexual, mas acreditam que o movimento norte-americano tem uma tendência puritana que levaria à condenação dos jogos de sedução e da liberdade sexual, além de injustiçar muitos homens.
Como se baseiam em problemas reais, alguma razão os dois lados têm. Mas se levados ao extremo acarretam numa distorção do bem e da verdade.
Enquanto isso, na vida cotidiana, vai se impondo um novo código de conduta, com maior respeito à mulher, mas que parece inibir também o que seria uma justa liberdade e manifestação de afeto entre amigos de sexos diferentes.
Em tudo isso, onde está o justo equilíbrio?
Nossa dificuldade está em perdemos tanto a visão integral quanto o real valor das relações afetivo-sexuais. Quem quiser se posicionar, nessa questão, a partir dessa integralidade e desse valor, encontrará um subsídio precioso – talvez inesperado – na reflexão ética de São João Paulo II, particularmente emTeologia do Corpo. O amor humano no plano divino (Campinas: Ed. Ecclesiae, 2014). Sua intenção, nesse campo, era ajudar as pessoas, fosse qual fosse sua crença, a descobrir e aprofundar o sentido da própria vivência afetivo-sexual.
Partindo do Gênesis, Wojtila mostra que o pudor exprime a nossa consciência de termos uma intimidade que deve permanecer inviolada e que o sinal mais explícito de um amor verdadeiro é a doação dessa intimidade ao outro.  Não se trata de uma afirmação “confessional”, mas de uma experiência que é compartilhada e pode ser compreendida por todos. Também não se reduz a ter mais ou menos pele exposta. Um índio poderá andar nu, mas nem por isso deixará de ter as suas manifestações de pudor – por mais diferentes que sejam das nossas.
Sempre que os comportamentos sociais perdem a referência a esse necessário pudor, a dignidade humana vem ultrajada. Contudo, não basta estabelecer limites. Essa intimidade não existe só para si, essa dignidade não se exprime de modo satisfatório enquanto não se realiza plenamente no dom de si ao outro.
Os limites não existem para nos fechar ao dom de si, mas para orientar nossa doação, de modo que doador e receptor saibam agir com respeito e reciprocidade diante da grandeza do gesto (pois o ser humano não pode fazer nada maior e mais digno que doar-se, por amor, ao outro).
Jogos de sedução e demonstrações de afeto têm a função de nos educar e nos ajudar a viver adequadamente essa experiência de doação, em suas várias modalidades e gradações. Quando isso se perde, nos tornamos vítimas de uma inaceitável violência, principalmente contra as mulheres, ou de uma vida afetivo-sexual que não satisfaz plenamente, pois cada um se fecha em si mesmo, sem perceber que sua dignidade se realiza na doação amorosa a um outro.
Num momento em que a sociedade repensa limites e comportamentos no campo afetivo-sexual, mais importante do que atacar ou defender um lado é, seguindo São João Paulo II, redescobrir o sentido mais verdadeiro e humano da nossa experiência. Pois, como afirma Bento XVI na Spe salvi (Nº 24-25) no campo da ética a verdade deve ser redescoberta a cada geração 
Jornal "O São Paulo", edição 3182, 17 a 23 de janeiro de 2018.

Antropologia positiva: berço da sociabilidade.

Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário FEI.

No último artigo, abordei como as concepções estadista e liberal veem as funções da sociedade civil à luz de uma mesma antropologia negativa. Agora, pretendo mostrar como a Igreja parte de outro ponto.
  Os papas João Paulo II e Bento XVI iniciaram um debate importante, ligando o tema das deficiências do Estado e do mercado com um renovado entendimento antropológico do homem. Em Centesimus annus, João Paulo II afirma: “O indivíduo hoje é, muitas vezes, sufocado entre dois polos representativos do Estado e do mercado. Às vezes, parece que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias, ou como objeto da administração do Estado. As pessoas desapercebem o fato de que a vida em sociedade não tem nem o mercado nem o Estado como seu propósito final, visto que a própria vida tem um valor único ao qual tanto o Estado como o mercado devem servir” (n. 49).
Já em Deus caritas est, Bento XVI diz que: “O Estado, que forneceria de tudo, absorvendo tudo em si mesmo, se tornaria por fim uma mera burocracia, incapaz de garantir exatamente aquilo de que a pessoa sofredora — na verdade, toda pessoa — precisa: ou seja, interesse pessoal amoroso. Não precisamos de um Estado que regule e controle tudo, mas de um Estado que, em harmonia com o princípio da subsidiariedade, reconhece e apoia as iniciativas surgidas das diferentes forças sociais e combina a espontaneidade com a aproximação dessas necessidades” (n. 28).
Partindo de uma antropologia que reafirma completamente a dignidade humana, o filósofo Luigi Giussani ressalta que o que determina o homem são as exigências fundamentais (desejo de bem, justiça, verdade) que guiam suas ações - pessoais e sociais – e, portanto, estão na raiz de toda ação econômica, social e política. “O desejo é como uma fagulha com a qual se acende o motor do homem e então ele se põe a buscar o pão e a água, o trabalho, uma poltrona mais cômoda e uma morada mais descente, interessa-se por saber como é que alguns têm tanto e outros não têm nada. A partir daí, a pessoa se torna sujeito ativo e verdadeiro da história” (O eu, o poder, as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 167). São também essas exigências fundamentais que fazem com que as pessoas se reúnam ao redor de ideais e formem grupos sociais. “Eles encarnam as exigências, imaginando e criando estruturas operacionais detalhadas e oportunas que são chamadas de ‘trabalhos’, ‘novas formas de vida para o homem’, como as definiu João Paulo II” (Idem, p. 243).
É claro que esses grupos não são lugares idílicos e “puros”, livres do erro ou do egoísmo humano. Mas eles são espaços para a redescoberta das necessidades estruturais humanas, onde uma educação contínua ajuda a todos a crescer, a alcançar uma percepção de si mesmo e da realidade, para educar o próprio desejo. A reconciliação entre os interesses individuais e o bem comum não ocorre por meio de coerção e repressão, como no modelo estatista, mas por meio de contínua educação, a fim de experimentar a correspondência entre desejo e realidade. E isso acontece em termos operativos, não dialéticos.
Assim, os interesses dos indivíduos podem sim ser aliados ao bem comum; e é essa aliança o coração das ações políticas e econômicas que conduzem a uma democracia real e a um mercado que não é sufocado por um governo com atuação de cima para baixo.
A subsidiariedade, que parte de uma antropologia positiva e de forças sociais, permite correções virtuosas ao liberalismo e ao estatismo. Assunto para meu próximo artigo.
Jornal "O São Paulo", edição 3182, 17 a 23 de janeiro de 2018.

A Encarnação e a renovação da Igreja

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Catão

Em ritmo de sínodo, a teologia nos convida a ir às fontes da renovação da Igreja, Corpo de Cristo e, portanto, à Encarnação, que lhe está na origem.
A Encarnação é a vinda de Deus à criação, não apenas como Criador, dando-lhe a existência, mas conferindo-lhe a possibilidade de participar de sua vida.
Vinda de Deus que, sendo comunicação de sua vida, nos permite chamá-lo de Pai e O acolhermos na liberdade, num ato de correspondência ao Amor, animado pelo Espírito de Jesus.
A Encarnação é, pois, uma realidade espiritual, um “mistério”, um ato de Deus, eterno, que transcende o tempo, ontem, hoje e sempre, mas que marca profundamente toda a História.
Foi preparada desde as origens, através de sucessivas alianças e realizada historicamente em Jesus, cuja ressurreição comunica o Espírito, que formamos a Igreja, expressão históricas, sacramento, da união com Deus e da unidade do gênero humano (Vaticano II) até a consumação final no Reino de Deus.
Sendo ato de Deus, mistério, não nos é dado a conhecer senão através da experiência humana, em que todos os nossos atos são fruto de uma decisão, uma escolha. Dizemos então que Deus Pai escolheu um povo e o preparou para se unir espiritualmente ao seu Filho.
O ato de união se realizou com o consentimento de uma jovem, filha desse povo, virgem totalmente voltada para Deus, inclusive na sua maternidade, resultante da união com Deus no Espírito, santificada desde sua concepção.
A vida humana de Jesus, sendo a vida do Filho de Deus, sua Palavra encarnada – “o Verbo se fez carne” – é o Caminho a ser seguido por todos nós, para alcançarmos a Verdade, a plenitude da Vida, a que todos somos chamados.
Caminho de Jesus, que passa pela rejeição, pela paixão, pela morte e pela ressurreição, e deve ser seguido por todos nós, não tanto na sua materialidade histórica ou social, mas no (seu Espírito, o) Espírito de Jesus que buscou, nos seus relacionamentos, sociais e políticos, sempre em primeiro lugar o Reino de Deus.
Esse o sentido da vida de todos nós, homens e mulheres, na sua maior diversidade cultural, social e política, a ser testemunhado pelos cristãos, pessoal e comunitariamente como Igreja, até o fim dos tempos.
(Entende-se assim porque dizemos), Como cristãos, devemos proclamar, pela vida e pela palavra, que a salvação, o caminho de Jesus, é universal, um dado histórico, um acontecimento que está na base de uma visão do mundo dá sentido à História, orienta a ética e inspira uma mística, que desperta um processo de renovação contínua da vida humana pessoal e social que está no horizonte de todo sínodo.
Somente nesse contexto entendemos a afirmação da Igreja, lamentavelmente nem sempre confirmada pelos fatos, de ser uma, santa católica e apostólica. No entanto, apesar das muitas divisões de que padece, dos pecados que cometemos, dos sectarismos que alimentamos, da inércia e dos conformismos que desfiguram nossa maneira de agir como cristãos, é na misericórdia do Pai que confiamos.
Agimos muitas vezes como se a vida da Igreja dependesse unicamente de nós, das autoridades, da administração, das celebrações, das campanhas, dos movimentos e dos eventos que constituem a trama de sua existência histórica, mas na verdade, a vida da Igreja é prolongamento da Encarnação, decorrente da ação de Jesus, por seu Espírito.
Cabe a nós, na pequenez do nosso dia a dia, como à Virgem Maria e sob sua guarda, dizer sim a Deus, que vem a nós.
Jornal "O São Paulo", edição 3181, 10 a 16 de janeiro de 2018.

A Igreja e o desenvolvimento humano integral

Ivanaldo Santos

Em de 17 de agosto de 2016, por meio de um Moto Próprio, o Papa Francisco criou o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Para este novo Dicastério da Igreja confluem, desde 1 de janeiro de 2017, quatro conselhos pontifícios: Justiça e Paz; o Conselho Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Itinerantes e Pastoral para os Operadores da Saúde. A partir dessa data esses quatro dicastérios deixaram de existir.
De acordo com o Papa Francisco o novo dicastério tem por missão: “promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho. Isto tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, paz e da proteção da criação”. Além disso, deve “aprofundar a Doutrina Social da Igreja, fazendo com que seja largamente difundida e posta em prática, e fazendo com que as relações sociais, económicas e políticas sejam cada vez mais permeadas pelo espírito do Evangelho”.
De um lado, o novo dicastério é uma reafirmação do princípio do humanismo integral desenvolvido, pelo pensador francês Jacques Maritian, na primeira metade do século XX. Um princípio que afirma que o ser humano está acima e além das ideologias, sejam de esquerda ou de direita. Além disso, afirma que o humano só é humano se for total, ou seja, se estiver permeado pela dimensão da fé, da espiritualidade, da ética, da arte, da economia, da política, da educação e do respeito à dignidade da pessoa humana. Do outro lado, o Papa Francisco reafirma que a Igreja, em sua essência, é o “corpo de Cristo?"  (I Coríntios 10, 16; Efésios 4, 12), a “casa de Deus" (Hebreus 10, 21), a “assembleia dos santos (Salmos 89, 7). Por isso, a Igreja deve levar aos indivíduos a dimensão do humanismo integral. Uma dimensão, muitas vezes, perdida no turbilhão das ações cotidianas e na alienação que marca o homem moderno. A Igreja deve estar centrada na dimensão da fé e da vida espiritual. Devido as exigências éticas da fé é que a Igreja deve, por meio da doutrina social cristã, ir ao encontro do humano e, com isso, levar a cada pessoa a dimensão do humanismo integral.
É preciso salientar que a Igreja não é uma ONG, um partido político, um sindicato ou está a serviço de alguma ideologia, seja de esquerda, direita, social democracia ou de outra natureza. A Igreja está a serviço do povo de Deus e de cada indivíduo que, em alguma estrutura social, esteja abandonado, solitário, desprotegido e desamparado. Alicerçada no Evangelho, a missão da Igreja é acolher e levar o humanismo integral, o verdadeiro humano, o “novo homem” (Efésios 2, 15) a cada indivíduo, a cada estrutura social que, por razões diversas, esteja presa em alguma dimensão do pecado, de dor, de sofrimento, de alienação e morte.      
Vivemos tempos perigosos. Tempos de radicalização, de retorno a ideologias autoritárias, de esquerda e de direta. Nesses tempos, o Papa Francisco tem um gesto profético ao criar um dicastério que tem por missão cuidar do humano integral, do novo homem anunciado no Evangelho. Ao mesmo tempo, esse gesto profético do papa indica o trajeto que a Igreja deve seguir em tempos de radicalização política e ideológica, ou seja, o caminho de passar distante das ideologias e, por isso, aproximar-se do homem real, do homem que está nas ruas e no cotidiano. Um homem que precisa ser ouvido, acolhido, precisa que suas feridas sejam limpas e suas dores curadas. Esse tipo processo não se faz com ideologias, mas sim com a experiência radical do Evangelho e um Evangelho que, como demonstra o papa, é integral.
Jornal "O São Paulo", edição 3181, 10 a 16 de janeiro de 2018.